Religião e Política: indicações no pensamento de Maquiavel

Religião e Política: indicações no pensamento de Maquiavel

Imagem: Wikipedia


Toda pessoa que se dedica ao estudo da filosofia política, em algum momento, deverá ponderar sobre a relação existente entre o político e a religião. No Ocidente de matriz cristã, então, torna-se ainda mais perceptível o uso da religião nas tomadas de decisões e nas diversas agendas políticas do mundo contemporâneo. Essa questão, por sua vez, não é somente contemporânea, sendo diversos os autores e autoras que se debruçaram sobre essa temática.

Dentre esses autores e autoras, pinçamos o pensamento de Maquiavel a respeito dessa relação, desenvolvida em seu livro Discorsi. Dessa forma, abordar seu pensamento sobre a relação entre política e religião deve ser capaz de possibilitar para nós novos olhares sobre essa questão urgente em nossos dias.

Maquiavel traz diversas visões diferentes a respeito da religião e sua relação com a vida da cidade. Essa religião, por sua vez, tem seu uso prático por parte do governante, ou seja, para o exercimento do poder, a manutenção da ordem e a motivação para os empreendimentos da cidade. Assim, ela usada para encorajar soldados, para eleger cônsules na Roma antiga e para punição daqueles que se levantam contra os costumes já estabelecidos e, nesse sentido, podemos perceber no pensamento maquiaveliano um uso instrumental da religião por parte do príncipe.

Por outro lado, essa religião não é somente instrumentalizada, mas ela também possui uma força em si mesma, uma vez que até o príncipe, caso queira continuar no exercimento do poder, precisa também se submeter a ela para o bem do povo, não podendo desprezá-la como se fosse algo da qual dispusesse por si só. Essa religião é uma “via autêntica e profunda de um povo, fator espontâneo da autoidentificação e de coesão política”[1]. A religião precede o príncipe e este, uma vez a aderindo, se for sábio, fará uso dela com sabedoria para o bem do povo e a manutenção do poder.

Para Maquiavel, essa força, por sua vez, também se manifesta quando do surgimento de uma nova religião. A nova religião destrói a antiga, fazendo, a partir daí, uma nova leitura do mundo e contando uma nova história a partir das crenças que essa religião traz consigo.

Como bem sintetiza Brown, a relação entre religião e política no pensamento maquiaveliano pode ser percebida de duas formas: como força política baseada no medo e como expressão de uma cultura do povo ordinário profundamente enraizada.[2]

Outro ponto a ser considerado na relação entre religião e política descortinada nos Discorsi é a assertiva maquiaveliana da religião enquanto motivadora do desprezo pelas coisas do mundo, o que gera uma população preocupada somente com o céu, sem fibra para lutar em favor da sua liberdade contra os inimigos. Essa visão, tão comum ao longo da Idade Média, em que a escatologia era vista somente como um além a ser esperado, ainda se faz presente em diversos movimentos cristãos. Assim, a crítica de Maquiavel é totalmente pertinente para diversos segmentos do cristianismo contemporâneo que ainda não revisitou um novo pensamento escatológico desenvolvido pela teologia do século XX e XXI.

Por último, consideramos interessante o fato de Maquiavel considerar a religião como coisa pequena responsável pela manutenção da união de uma determinada sociedade. Sem querer transformar Maquiavel em um teólogo do século XVI, impossível não relacionar esse trecho com a parábola de Jesus em que compara o Reino de Deus como semente de mostarda que, sendo a menor de todas as sementes, ao crescer, torna-se lugar onde os pássaros fazem seus ninhos.

Assim, mesmo considerada como pequena por Maquiavel é a religião em seus diversos ritos que possibilita a confiança por parte daqueles que podem garantir a sobrevivência da cidade, a saber, os soldados. Nesse sentido, Maquiavel reconhece o poder da religião para a vida política e a relação entre esta e aquela se torna imprescindível de ser bem administrada na cidade.

[1] CUTINELLI-RENDINA, Emanuele. Église et religion chez Machiavel. In: GAILLE-NIKODIMOV, Marie; MÉNISSIER, Thierry (ed). Lectures de Machiavel. Paris: Elipses, 2006, p. 213.

[2] BROWN, Alisson. Philosophy and religion in Machiavelli. In: NAJEMY, John M. (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. London: Cambridge University Press, 2010, p.157-169.

 

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