A moralidade como mensuração cristã
Que desde Agostinho já tenhamos um germe de uma religião que se voltava para si para o encontro com Deus parece um consenso entre teólogos e teólogas espalhados pelo mundo. Que o Protestantismo ressalta esse caráter individual, reforçando-o em muitos pontos também não parece difícil de ver.
A partir daí, claro, considerando todo o movimento do Iluminismo, Racionalismo e desenvolvimento científico que acompanha essa guinada religiosa na Idade Moderna, é possível perceber um Cristianismo que se volta para o ser humano mais do que para a comunidade ao seu redor.
O desenvolvimento de uma doutrina de salvação individual, desconectada do aspecto comunitário segue ao longo da história do Cristianismo durante tanto tempo que muitos pensam que foi sempre desse jeito. Claro, uma leitura do texto bíblico ajudaria perceber que não era bem assim, antes, a comunidade era muito mais importante que o indivíduo (categoria essa que, como conhecemos hoje, nem existia nos escritos do Antigo e Novo Testamentos).
De toda forma, é importante perceber que grande parte de nós, Protestantes e Evangélicos da atualidade, nascemos nesse contexto de acreditar que a salvação individual é o que importa e, mais ainda, estar de boa com Deus e com o relacionamento em dia é fundamental para, de certa forma, ser visto como um/a servo/a segundo o seu coração
Tendo isso em mente, não é difícil perceber porque o movimento neopentecostal brasileiro (e, em alguma medida também os movimentos de Renovação Carismática no Catolicismo) fez tanto sucesso na sociedade, angariando para si diversas pessoas, de diferentes classes sociais. Sob a égide de que Deus recompensa àqueles/as que são fieis com bens financeiros e vida próspera, é possível notar o velho mote do “american way of life”. Ou seja, uma vez que a fidelidade depende somente da própria pessoa (visto nunca ser possível ser fiel no lugar do outro), as bençãos de Deus não são nada mais do que a pura recompensa do esforço que cada pessoa realizou para ser encontrado como digno dessa benção divina.
Dessa forma, estabelece-se, no movimento neopentecostal (e também, infelizmente, copiado por diversas igrejas sejam históricas, sejam pentecostais), uma meritocracia cristã, em que é possível mensurar o esforço da fé e da fidelidade de cada fiel e, de alguma maneira, até mesmo rankear mentalmente os que “vestem a camisa” e os que somente “trabalham pelo salário”.
De todos os seguimentos cristãos tudo me leva a crer que o movimento neopentecostal seja aquele que melhor assimilou as premissas do capitalismo neoliberal e colocou o discurso meritocrático no âmbito da fé.
Ora, se há meritocracia, então há também uma forma de mensuração. E qual, desde sempre, foi a forma preferida dos movimentos religiosos ao longo da história de mensurar quão perto alguém está ou não de Deus senão a moralidade?
Parece-nos claro que a moral sempre ocupou esse lugar de régua do comprometimento com a divindade. Seja no judaísmo, com os ritos de pureza dos fariseus e sacerdotes, seja no movimento cristão que desde Agostinho tem sérios problemas com sexo, uma moralidade aparente sempre foi o carro chefe para dizer se algo agrada ou não a Deus. Claramente, o Cristianismo esqueceu-se do péssimo exemplo de moral que foi Jesus de Nazaré para o seu tempo, o que comprovam os quatro evangelhos em diversas narrativas.
Contudo, como a necessidade de dizer o que é certo e errado fala mais alto do que os exemplos do Mestre, o Cristianismo se tornou um exímio fiscal de uma suposta moralidade que foi decidida nos céus e que chega a todos os povos da terra de maneira atemporal.
Curiosamente, somente esse Cristianismo tem a real compreensão da moralidade desejada por essa divindade e é o responsável por pregá-la a todos e todas, tendo, ainda, a autoridade para condenar aos que não a aceitam à danação eterna.
Em outras palavras, quanto poder esse Cristianismo assumiu para si: além de ser o portador da moral atemporal, ainda se considera a vara de medir das moralidades alheias, podendo assim, normatizar as condutas da sociedade.
Com esse pano de fundo, talvez seja possível perceber porque o discurso de moralidade e bons costumes entrou com tanto peso no movimento cristão, seja católico, seja protestante. Uma vez que ser considerado “segundo o coração de Deus” é uma questão de mérito pessoal, fruto da fidelidade nos dízimos, ofertas e fidelidade aos líderes, aliada a uma moralidade que se acredita ser atemporal e da parte de Deus, e considerando que nenhum cristão deseja estar mal diante de Deus, tem-se a combinação perfeita para fazer a ponte que liga o comportamento moral à recompensa divina e levantar um exército fiscalizador da moralidade em todos os aspectos da sociedade, concedendo, assim, um grande poder a líderes evangélicos e católicos que, com esse tipo de discurso (que combinemos, vende igual água, ainda mais em uma época de pós-verdade) influenciam milhões de pessoas a tomarem determinada agenda, mesmo que essa vá contra todos os ensinamentos de Jesus de Nazaré e de todo o Novo Testamento.
Porém, quando a moralidade toma o lugar do amor e a preocupação individualista toma o lugar da preocupação com a comunidade, o que se mostra é um Cristianismo que deixou de ser cristão e que se esqueceu de que o Deus pregado é pura relação, ou seja, Trindade.