Questões sobre fé, democracia e república
É notório em dias atuais o aumento do apelo religioso e do uso do texto bíblico para justificar posturas não democráticas e que abalam qualquer república que deseja ser realmente laica. O crescimento do neopentecostalismo na América Latina e em países do continente africano, bem como sua interferência nos processos democráticos são questões que durante muito tempo não foram observadas por cientistas políticos, religiólogos e religiólogas, e nem por teólogos e teólogas contemporâneos. Sempre foi visto como movimento marginal e de charlatanismo, pregador da teologia da prosperidade e que não deveria ser levado em conta pelas diversas teologias dos países do sul continental.
No entanto, esse movimento neopentecostal iniciado por volta da década de 70 em solo brasileiro tem se espalhado, sendo o movimento que mais cresce no país. Como consequência, também penetra em diversos setores da sociedade, tais como as empresas, escolas e, ainda mais perigosamente, na política.
Sob a égide de uma leitura fundamentalista do texto bíblico, tomando-o de forma totalmente descontextualizada, começa-se a afirmar que o país somente será transformado quando todos se converterem ao cristianismo e seguirem o texto bíblico como regra de conduta. Uma vez que esse tipo de pensamento é facilmente capilarizado nas comunidades mais pobres, bem como nos diversos segmentos políticos, legislativos e judiciários, o que se tem é um atentado à laicidade da República e do estado democrático de direito, entrando no lugar uma espécie de teocracia capitalizada que leva o dinheiro arrecadado nessas igrejas para seus líderes e esses, por sua vez, aumentem seus poderes de influência junto às esferas decisórias do país.
Dada essa capilaridade, não é de se espantar que os golpes de estado que acontecem na América Latina em dias atuais, sejam os de caráter jurídico, como no caso brasileiro, ou à moda antiga, com militares exigindo saída do presidente boliviano, sempre tenha a Bíblia como escudo. A cena dos que deram o golpe na Bolívia, ajoelhados sobre a bandeira com a Bíblia aberta sobre ela é bastante emblemática e mostra como os golpes atuais encontram nas leituras de cunho fundamentalista, própria dos movimentos pentecostais e neopentecostais, sua base de apoio para justificar a tomada de poder e minar as questões republicanas.
O versículo preferido, como sempre, é o do Salmo 33,12 que afirma: “Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor”. Também, como é de praxe em leituras fundamentalistas, tira-se o versículo de seu contexto para usá-lo como pretexto de que a nação cujo Deus é o Senhor é aquela que seja de religião única e cristã.
A nação de Israel, contudo, afirma que Deus é o Senhor com base na sua experiência de ter sido liberto da escravidão do Egito, de ter visto os grandes feitos Dele diante daquelas nações que os oprimiam, de experimentar sua justiça que trazia refrigério em momentos conturbados e que se colocava ao lado dos que precisavam Dele. A nação cujo Deus é o Senhor é feliz porque nela reina a justiça e a misericórdia que livra as almas da morte e conserva as pessoas famintas com vida, como afirma o mesmo salmo, em seu versículo 19.
Da mesma forma, a partir de Jesus Cristo, a nação cujo Deus é o Senhor não é aquela que tem um regime teocrático. Muito pelo contrário, trata-se de uma nação na qual os princípios do Evangelho podem ser percebidos, que dá de comer aos que não têm, que veste às pessoas nuas, que olha para o pobre e luta para que a pobreza tenha fim, para que haja igualdade social, de maneira que haja condições dignas para todas as pessoas.
O uso incorreto do texto bíblico, muitas vezes de maneira leviana, tem levado ao enfraquecimento da laicidade do estado democrático de direito e dos princípios republicanos, há tanto conquistados, ainda que a duras penas, na América Latina. Compreender o neopentecostalismo e mostrar seu plano de poder, então, torna-se uma tarefa imprescindível em dias atuais, a fim de que o país não caminhe para uma teocracia cujo Deus não é o Pai de Jesus Cristo, mas o deus Mercado que, assim como Moloque, devora os seus filhos e filhas.