Deus meu, Deus meu, por que me desamparastes?
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Esse versículo, grandemente conhecido a partir do evento da crucificação de Jesus, é, na verdade, o início do Salmo 22, no qual o salmista, aflito, clama pelo socorro de Javé.
O salmo traz questões muito interessantes. Primeiramente, o salmista mostra o seu grande desespero, perguntando o porquê de Deus o haver abandonado, sem ouvir o seu clamor. Considera sua oração em vão, uma vez que não consegue ver o alívio de seu sofrimento. Da mesma forma, fala dos escárnios e zombaria das outras pessoas, por ele ter colocado a sua confiança em Javé, assim como fizeram os seus pais.
Mais para frente, continua expondo a Javé o seu sofrimento, o quanto está cercado de perigos e o quanto teme em sua alma pelo que lhe pode acontecer, clamando, novamente, o auxílio de Deus para sua aflição.
Claramente, a experiência do salmista nesses primeiros versículos não é diferente de vários e várias de nós que lemos o texto. Diversas vezes já nos sentimos impotentes, sem conseguir vislumbrar nenhuma saída para os problemas nos quais estamos. Quantas vezes, ao longo da caminhada, também não nos sentimos abandonados por Deus, como se Ele não existisse ou não ligasse para os problemas do mundo? O velho paradoxo atribuído a Epicuro: “se Deus é onipotente, por que não acaba com o mal? Se não o faz porque não quer, então é sádico, se não o faz porque não pode, então não é onipotente”, ainda hoje faz com que nos questionemos onde está Deus diante do mal.
O salmista, obviamente, não coloca a questão, nem tão pouco, os Evangelhos o fazem. No lugar, mostram a angústia e o desespero daquele que sofre em momentos de angústias profundas.
Na narrativa evangélica da crucificação de Marcos 15, o salmo é colocado na boca de Jesus, simbolizando a situação do Filho naquele momento bem característico. Embora possa parecer que o sentimento de Jesus seja somente o de desespero e abandono frente à situação que vivencia e que aponta para a sua morte, a continuidade da leitura do salmo nos ajuda a compreender o que Marcos, possivelmente, está querendo dizer ao trazer tal salmo para a boca de Jesus.
Já caminhando para o final do salmo, o salmista nos conta que ele encontrou o auxílio do Senhor, tendo este vindo ao seu encontro. Isso se mostra claro no versículo 24: “Porque não desprezou nem abominou a aflição do aflito, nem escondeu dele o seu rosto; antes, quando ele clamou, o ouviu”. Em outras palavras, Deus não se mostrou alheio ao clamor do salmista, antes estava atento a ele e o ouviu, vindo ao seu encontro. Por esse motivo, o salmista termina o salmo engrandecendo o nome de Javé e ressaltando seu domínio sobre toda a terra.
A compreensão do salmo 22 nos ajuda a compreender o texto de Marcos 15. Ao colocar tal salmo na boca de Jesus, o evangelista tem o intuito de fazer compreender que Deus não abandona o seu Filho, mas se faz presente com Ele no momento de seu maior sofrimento. Tal como uma música, a qual remetemos somente ao seu início para que a outra pessoa relembre sua letra, possivelmente foi o que o evangelista fez para seus leitores. Ao mencionar o início do Salmos 22, faz com que o leitor que conheça o salmo se lembre de sua mensagem e veja que mesmo na auge do sofrimento de Jesus, seu Pai não o abandonou, mas estava ali juntamente com ele, dando-lhe força para suportar seu maior momento de angústia.
Com isso, o paradoxo atribuído a Epicuro não encontra uma resposta, mas com certeza, a partir da fé cristã, é possível dizer onde está Deus diante do sofrimento humano: Ele está lá junto com aquele e aquela que sofre, sofrendo junto com eles, dando-lhes forças para suportar os sofrimentos. Ele não está alheio e distante, mas caminhando conosco, ouve nossos clamores.