A Bíblia não é e não contém a Palavra de Deus
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É muito comum ouvir e perceber, ainda em nossos dias, uma leitura literalista do texto bíblico, ou seja, aquele tipo de interpretação que considera que o que está escrito na Bíblia é a palavra de Deus ipsis literis – de modo que tudo que está ali deve ser obedecido da forma como está escrito.
Aqueles e aquelas que fazem tal tipo de leitura se esquecem de dois pontos fundamentais para a fé cristã. O primeiro é que a Bíblia não é a palavra de Deus. A Palavra, como mostra o prólogo do Evangelho de João, é Jesus Cristo. Assim, considerar um texto que foi escrito para falar sobre a Palavra de Deus, como sendo a própria Palavra, é não compreender a mensagem que tais escritos querem trazer. Da mesma maneira, não é possível dizer que a Bíblia contém a Palavra de Deus. Cristo é muito maior que o texto bíblico. Assim, tentar reduzir tudo da pessoa de Jesus a um texto mostra-se algo sem sentido. Em outras palavras, para a velha querela existente no meio evangélico – que pergunta se a Bíblia é ou contém a Palavra de Deus – a resposta é negativa para ambas questões.
O segundo ponto esquecido dentro de uma leitura literalista é aquele que diz respeito à própria limitação humana dentro do tempo em que se está inserido. Todo texto escrito o é em algum momento na história e, consequentemente, também é condicionado pelas realidades culturais, econômicas e sociais do seu tempo.
Assim, não é difícil compreender por que determinados aspectos ou fatos são levantados por um autor, enquanto outro decide sublinhar outras questões na construção de sua narrativa. Basta tomarmos algumas passagens dos Evangelhos para que isso fique claro. Por exemplo, Marcos e João não falam sobre o nascimento de Jesus, enquanto Mateus e Lucas dedicam algumas páginas de seus textos para falar sobre isso. Por que tais coisas acontecem? Provavelmente, porque tais temáticas, enquanto importantes para as comunidades mateana e lucana, eram irrelevantes para as comunidades joanina e marcana.
Dessa forma, mostra-se extremamente perigoso tomar um texto bíblico desconsiderando tais aspectos. Isso é observado quando algum líder religioso ou político toma textos bíblicos para suas campanhas ou para a intimidação de seus liderados – como se o texto fosse atemporal simplesmente por estar num livro considerado sagrado para os cristãos.
Nenhum texto é atemporal. Todos surgiram em algum momento na história humana. Há, porém, textos que transcendem o seu tempo e servem de ensinamentos para nós até hoje. Pensemos em Homero, nos textos de Buda, nos Vedas, dentre tantos outros que, mesmo tendo sido escritos com categorias de seu tempo, transcenderam-no, servindo de ensinamento para nós hoje.
O texto bíblico não foge a essa regra. Crer que tal texto seja inspirado por Deus não quer dizer crer que Deus ditou tal livro, muito menos que Deus está, por meio dele, dando spoiler sobre o que acontecerá no futuro a um grupo seleto de pessoas que são capazes de decifrar o que está no texto.
Muito pelo contrário, crer que o texto bíblico é inspirado por Deus quer dizer que se crê que ali estão os princípios de Deus para a vida humana e sua relação com o próximo e com a natureza. A partir de Jesus, que para a fé cristã é a Palavra de Deus, tal princípio é o do amor, de maneira que tudo que não segue tal premissa não pode ser considerado como pertencente àquilo que Deus deseja de nós.
Com isso em mente, uma teologia que quer se mostrar cristã deve ter o amor como bandeira, o que implica lutar contra tudo que gera discriminação, violência e morte. Consequentemente, estar aberta a ouvir o diferente e aprender com ele, na humildade de reconhecer que não é a única voz verdadeira e, muito menos, detentora da verdade última sobre as coisas.