Um Deus às avessas
Talvez uma das maiores radicalidades trazidas pela proposta cristã seja a definição de Deus que seguiu na contramão de tudo aquilo que se esperava dos deuses dentro do contexto judaico e romano. No lugar de um Deus belicoso, que vence por meio da força e da violência, que tem sua vontade cumprida independentemente dos meios que sejam necessários para isso, entra em cena um que é amoroso, manso e humilde, que aceita ser rejeitado, morto e feito como maldito.
Em outras palavras, podemos pensar numa espécie de um Deus às avessas, uma vez que tudo aquilo que era esperado dele foi transformado em seu contrário. No lugar de um Deus que deveria ser forte, ele se mostra no estereótipo da fraqueza, no lugar de um Deus que deveria ser guerreiro, ele se mostra como um pacificador, no lugar de um Deus que deveria reinar como um monarca soberano, ele se revela nascendo na periferia e andando junto com os pobres.
Para além de tudo isso, o autor da 1ª carta de João traz uma definição desse Deus às avessas como amor, ou seja, como alguém que está sempre buscando o bem do outro e que se importa efetivamente com as condições de existência daqueles e daquelas que se achegam a ele. Radicaliza ainda mais, ao dizer que a forma de se testemunhar a respeito do conhecimento que se tem desse Deus às avessas é na demonstração efetiva do amor para com os irmãos e irmãs da comunidade na qual se está inserido.
Em outras palavras, é na busca do bem efetivo e materializado que se manifesta o amor a esse “novo” Deus apresentado. Dizer que o ama e não praticar esse amor para as pessoas que são próximas transforma quem o diz em mentiroso/a. Como consequência, o amor se torna o critério para baliza de qualquer relacionamento com esse Deus apresentado pela doutrina cristã.
Curiosamente, ao olharmos para nossos dias, tal radicalidade parece matizada, como algo que caiu no senso comum. Ouvir a frase “Jesus te ama”, para muitas pessoas não quer dizer muita coisa e, na verdade, em vários lugares já se virou mera abordagem proselitista para tentar convencer alguém a se converter ao movimento evangélico.
Esquecer tal radicalidade trazida por essa definição de Deus, por sua vez, também traz em seu bojo a ideia de que é possível ser cristão/ã sem amar ao próximo, preocupando-se somente consigo mesmo. As ideias de que vivemos em uma selva de pedra, de que é cada um por si e Deus por todos, de que o mundo é mau mesmo e, por isso, mostrar compaixão para com as pessoas é um convite a ser feito de idiota, são muito comuns na sociedade em que vivemos, até mesmo entre as pessoas que se dizem cristãs.
Para muitas pessoas, o relacionamento com Deus deixou de ser comunitário, passando a ser somente uma relação dois a dois, importando-se somente com o que é necessário fazer para “ser salvo” ou “ir para o céu”. Em outras palavras, transformou-se a relação com Deus em uma transação comercial para se alcançar algum mundo pleno, esquecendo-se de que, na visão bíblica, a esperança é de que uma nova criação se fará presente neste mundo e não no além.
Recuperar a radicalidade da definição de um Deus às avessas, que é amor, mostra-se fundamental, caso o cristianismo queira ser imitação da vida de Jesus de Nazaré. Sem tal recuperação e tudo o que ela implica, só nos restará lembrar das histórias antigas, mitológicas e violentas escritas em um livro a que chamamos de Bíblia, tentando convencer as pessoas de que ali está algumas palavras de um deus como os outros deuses antigos.