Sobre certezas diabólicas
Dentre as diversas forças dos movimentos conservadores mal intencionados há sempre um reivindicar para si a prerrogativa da certeza de que se está do lado certo e desejado por Deus. Baseiam-se, em sua maioria, em torno da ideia de uma regra moral que existe desde sempre e que foi ordenada no céu desde a criação do mundo. Obviamente, tendo a certeza como ponto de partida, tudo aquilo que vai contra ela deve ser combatido e não pode ser nem sequer falado, bastando para isso ver toda uma luta dos movimentos criacionistas que têm certeza de que o mundo teria cerca de 6000 anos, com base na certeza de que o texto bíblico é uma biografia do tempo e do mundo tal como ele é, não importando se os diversos estudos científicos mostram que a Terra existe há milhões de anos.
Lidar com a ideia de que o texto bíblico é um texto histórico, e como histórico está sujeito a imprecisões e erros, sendo também fruto de certo contexto cultural e societário torna-se quase um pecado a ser combatido. Ou seja, todo discurso que segue na contramão das certezas que esses grupos acreditam encontrarem nas Escrituras torna-se uma ameaça à fé cristã e uma ameaça às pessoas de boa fé.
No campo moral, porém, isso se dá ainda de maneira mais forte, uma vez que para esses grupos ela se torna a reguladora de todo e qualquer comprometimento com o divino, podendo este, até mesmo, ser ranqueado de acordo com essa régua moral criada.
Sendo a certeza, como anteriormente dito, o que move todos os discursos desses grupos, vale tudo para garantir que essa mesma certeza tenha sua base escriturístca e na tradição da fé. Para fazer isso, não importa se o texto é tirado do seu contexto e usado a seu bel prazer, bem como não importa se o que se propõe seja um self service bíblico para que somente aquilo que esses grupos conservadores acreditam seja dito como verdade. Nesse contexto, claramente, não importa se, baseando-se no mesmo texto, escolhe-se determinada temática como “descontextualizada” e outra “valendo como norma eterna para os dias atuais”.
Assim, não é difícil encontrarmos nesses grupos pessoas que usam (para citarmos somente um exemplo dentre vários) o livro de Levítico para dizer que ele é válido para os dias atuais quando diz: “não deitarás com um homem como se deita com mulher; isso seria uma abominação” (Lv 18,22), e é, ao mesmo tempo, inválido para os dias atuais quando se diz, no capítulo posterior: “… não acasales duas espécies diferentes do teu gado; não semeies no teu campo duas sementes diferentes; não uses vestes de pano híbrido, tecido de duas vibras diferentes” (Lv 19,19), mesmo que os dois textos façam parte do mesmo código de Santidade do povo de Israel.
Com isso, o que se manifesta claramente é um uso seletivo do texto bíblico no intuito de pregar posições ideológicas discriminatórias, cruéis e sem fundamento na fé cristã. Na ânsia de estarem certos a respeito de tudo, mutilam o texto bíblico como um todo, seja o Antigo Testamento, sejam as narrativas evangélicas, ou as cartas paulinas.
Que as convicções sejam demônios que nos assombram, disso já nos alertava Rubem Alves, o que pode ser percebido no crescimento de diversos movimentos diabólicos (no sentido teológico do termo) que, disfarçados de preocupação com santidade e baseados em ditas certezas, visam causar divisão e segregação entre as pessoas. Com isso, desconsideram que o Deus cristão é aquele que chama a todos e todas como são para participarem e receberem sua maravilhosa graça, que é derramada constantemente sobre todas e todos, e é reconhecido como Amor, sem qualquer “mas” após isso.
Diante dessa realidade, torna-se imprescindível o trabalho teológico e os estudos sérios a respeito do texto bíblico, do seu contexto histórico, cultural e social para que haja um ensino das realidades bíblicas e da mensagem nela contida, que é a mensagem de um Deus que acolhe o diferente, ama o estrangeiro, doa a si mesmo, deseja uma relação de amizade e não de subserviência com aqueles e aquelas com os quais compartilha sua vida.
Tudo que segue na contramão disto não tem base cristã, antes, como temos repetido, não passa de ideologia para o exercício do poder.