Salvação que é somente da alma é realmente salvação?
Algo curioso acontece ao longo do movimento protestante e influencia grandemente a forma como muitos evangélicos se portam hoje no mundo. Desde o início da Reforma houve grande apelo à questão da salvação individual da alma daquele que crê. Esse individualismo da salvação, embora já se perceba desde os tempos de Agostinho e sua ênfase no conhecimento de Deus que se dá no interior do homem, a partir do movimento reformador de Lutero atinge um outro nível.
Ao observar os diversos movimentos advindos da Reforma, percebe-se que a ênfase de praticamente todos é a da “restauração” do verdadeiro Evangelho e do agir do Espírito que precisa ser renovado diante de uma comunidade que está se esfriando e se “romanizando”. Por esse motivo, faz-se necessária uma renovação que, consequentemente, gera a saída do grupo que propõe tal renovo e a criação de uma nova denominação que, posteriormente, também terá que ser restaurada. Em todos esses casos, a ação do Espírito no interior de cada humano é o que faz ele perceber que determinada comunidade está se esfriando e precisa de renovação.
Essa ênfase na ação interior marca profundamente o protestantismo e, consequentemente o movimento evangélico que segue dele. A preocupação fundamental de grande parte do movimento evangélico atual, principalmente brasileiro, é a de salvação da alma, sendo a salvação do mundo aquela que ocorrerá quando todas as almas forem salvas, motivo pelo qual se deve pregar o Evangelho a toda criatura para que Jesus possa voltar e reinar sobre o mundo. Salvação da sociedade é, então, o conjunto das salvações de todas as almas individuais.
Diante disso, é comum no movimento evangélico brasileiro, principalmente os de cunho mais fundamentalista, pouca preocupação com as questões estruturais da sociedade, bem como com as questões ambientais, econômicas etc. Se há algum problema nessas coisas, isso, provavelmente, é Deus julgando o mundo pelos pecados cometidos, a fim de que esse reconheça que Jesus está voltando e que é preciso se voltar para Deus e buscar a salvação da alma.
Nesse cenário, o protesto que se é comum perceber entre essa classe de evangélicos brasileiros não é aquele que questiona as estruturas de opressão da sociedade, mas aquele que vai contra as condutas morais que este grupo considera errado baseado, na maioria das vezes, em uma leitura literal do texto bíblico.
Ainda que, em meio protestante tenha surgido teólogos preocupados com as questões políticas, sociais e estruturais do mundo em que vivemos, tais como Jürgen Moltmann em solo europeu e José Bonino na América Latina, ao observar as igrejas evangélicas no Brasil, são poucas aquelas cujo foco não está na salvação individual da alma de cada indivíduo que entra nela.
Dessa forma, as causas de luta de grande parte dos pertencentes a este grupo são contra a homossexualidade, contra o “aborto”, contra a legalização das drogas, e tantas outras pautas que são consideradas pecaminosas e atenta contra aquilo que entendem ser as condutas desejadas por Deus.
Nesse sentido, não é de se espantar que a bancada evangélica que existe no país tem sido responsável por diversos ataques às minorias e àqueles que sofrem discriminação. Afinal, se ser homossexual, abortar e fazer uso de drogas são sinais de que não há salvação naqueles que os praticam, por que aprovar leis que protegem a esses tipos de pessoas? Se mães pobres morrem constantemente fazendo abortos clandestinos isso é porque elas não conheceram o salvador e não amam a vida, se homossexuais são mortos pelos “homens de bem’ que não tem preconceitos, a morte deles se dá devido à sua promiscuidade e depravação, se a “guerra ao tráfico” só condena preto e pobre nas periferias, é porque esse é vagabundo e quer vida fácil.
Diante disso, não faltaria ao movimento evangélico brasileiro atual compreender que, além da salvação do humano, em Jesus estava também a salvação de todo o cosmos, bem como o mesmo Espírito que enviara o profeta a “levar alegre mensagem aos humilhados, medicar os que têm o coração confrangido, proclamar aos cativos a liberdade, aos prisioneiros a abertura do cárcere e proclamar o ano do favor do Senhor” (Is 61,1)?