O que entendemos por evangelho?
Nosso texto da semana passada falava a respeito das diversas buscas de Jesus que se tem feito em nossos dias e questionava a respeito de qual Jesus estaríamos a buscar. Coincidentemente, na mesma semana, um amigo meu pediu minha opinião a respeito da tese de que Jesus pertencia à seita dos zelotas que existia no tempo em que Jesus estava na Galileia. Após conversarmos e expor minha opinião sobre o tópico e entrarmos em diversos assuntos, ao perguntar a ele o que entendia como sendo o evangelho, sua resposta foi de que seria uma criação de mito com o intuito de moldar condutas. É essa situação que me levou a refletir sobre o texto dessa semana.
É sabido que, com a conversão de Constantino e a transformação do cristianismo em religião oficial do Estado, muito do caráter revolucionário e não conformado que o evangelho traz em sua raiz foi se perdendo. Cada vez mais se aliando ao poder político, o cristianismo passou a ser usado, sim, para a moldura de condutas. Isso a própria história mostra e não devemos considerar essa fala como um absurdo ou uma blasfêmia. Basta lembrarmos o tempo da Inquisição que temos uma ideia do que foi uma nação sob domínio de um cristianismo ligado ao poder e que se entendia como “a vontade de Deus” para a Terra. Uma vez sendo “o modo de viver” querido por Deus, todos aqueles que viviam de modo diferente precisavam ser condenados. A condenação era o juízo de Deus que vinha sobre os infiéis.
Hoje em dia, o mesmo discurso ainda se vê presente e crescente em nosso meio. Não é difícil lermos em nossas redes sociais os discursos a respeito da “vontade de Deus” quando, principalmente, algum evangélico assume o governo de alguma capital ou estado. Esses discursos, em sua maioria, se concentram em um “modo de viver” que deve ser seguido por todos, independentemente de sua crença, uma vez que essa “vontade de Deus” precisa ser feita na Terra.
Se entendemos o evangelho dessa forma, preciso concordar com meu amigo e dizer que realmente ele é a criação de um mito para moldar condutas e, indo um pouco além, para até mesmo justificar o domínio através de governantes que são os “enviados de Deus” para resolver as situações complexas dos países, estados e cidades para onde foram “chamados”.
Contudo, entender o evangelho na sua perspectiva cristã, vai muito além disso. Partindo da terminologia, encontramos que o evangelho quer dizer boa nova. E que boa nova é essa? É justamente a de que Deus se faz presente junto ao sofrimento do mundo, sofrendo junto com ele a fim de resgatar a comunhão com a sua criação.
Se entendemos o evangelho dessa forma, então toda a tentativa de poder e domínio como sendo “vontade divina” não se sustenta, uma vez que o autoesvaziamento de Deus mostra que o verdadeiro poder não está em exercer domínio sobre os outros, antes em se entregar em prol deles. Ouvir o chamado de Deus, dessa forma, se transforma no contrário dessa tentativa de dominar sobre os outros e impor sua vontade, ou seja, se converte em liberdade exercida em amor e sofrimento junto com aqueles que sofrem.
Somente entendendo o evangelho dessa forma é que é possível fugirmos da tentação de achar que a nação desejada por Deus é uma nação em que todos pertencem e seguem os padrões do cristianismo. Isso implica em aceitar a alteridade da sociedade e buscar o convívio saudável e fraterno entre todos e todas sem tentar exercer domínio sobre eles ou elas, mas, por meio do amor, mostrar que isso é somente um reflexo de que “Ele nos amou primeiro”.
Dessa forma, o evangelho poderá deixar de ser visto como tentativa de dominação e ser visto como proposto por Jesus, ou seja, declaração do amor de Deus por nós e por sua criação.