A velha mania de cercear a liberdade como tentativa de controle
Recentemente, vi uma reportagem que dizia que Cristina Kirchner condicionara a compra de objetos online em sites internacionais para o povo argentino, com o intuito de fortalecer a moeda nacional. Cada argentino só poderia fazer duas compras em sites estrangeiros. Do contrário, pagaria uma multa de 50% sobre o valor do bem comprado.
Os que compram pela internet sabem que, caso nosso hermano quisesse fazer a terceira compra, o preço do frete + conversão da moeda + imposto de 50% da Kirchner seria, sem muito esforço, maior que o preço do produto.Para ler a reportagem, clique aqui.
Assim que vi essa notícia a primeira coisa que me veio a cabeça foi: “a velha mania de cercear a liberdade como tentativa de controle”.
Tenho pensado sobre esse tema há alguns dias.
É muito comum percebermos essa tentativa de cerceamento de liberdade para ter o controle sobre determinada pessoa ou objeto. Afinal, nada melhor para o detentor de poder que todos os seus subordinados possam ser vigiados e controlados de alguma forma. E qual a forma mais fácil de exercer poder, sem ser um tirano à moda antiga, senão, sutilmente, cercear de liberdade àqueles que estão sob o meu domínio?
Ao mesmo tempo em que o controle é mantido há a sutileza inerente aos cortes de liberdade para o “bem” do subordinado.
Contudo, mesmo algo extremamente comum, por ser sutil, pode ser pouco percebido pelos envolvidos. O que cerceia tem o discurso da proteção, de que o outro é inexperiente, dentre outros que poderíamos listar aqui. O que é cerceado recai em certa acomodação frente ao status quo ou culpa por tentativa de sair desse vínculo de “prisão” criado pelo detentor do poder. Não dificilmente encontramos pessoas cujo discurso de acomodação já tomou conta de sua forma de agir devido a anos de submissão feroz.
Alguns já nasceram nessa condição e nunca pensaram sobre as diversas formas de cerceamento de liberdade que ocorreu e ainda ocorrem em suas vidas, outros perceberam a exploração ao começarem a pensar sobre as relações estabelecidas, contudo a culpa não os permite sair, uma vez que ir contra as normas impostas é sinal de deserespeito, falta de amor, desobediência a Deus.
Em muitas famílias está na relação com aquele que exerce o papel de chefe da casa (seja homem ou mulher) e a sustenta financeiramente. Este crê, como todo bom capitalista, que aquele que tem o dinheiro é quem manda, e assim, sutilmente ou não, cerceia a liberdade de todos os que estão na casa, gerando culpa a todos aqueles que tentam sair da dominação existente. Em outras famílias está na chantagem emocional que é feita, principalmente sobre os filhos. Não raramente frases do tipo: “se você fizer isso passarei mal de desgosto” são muito comuns e fazem com que os filhos sintam-se culpados caso tomem uma decisão que vai contra a vontade daquele que exerce o poder.
Não digo que tudo isso é proposital. Acredito até, que na maioria das vezes, não o seja, contudo algo comumente percebido em nossa sociedade.
No caso de relacionamentos de namoro ou casamento, não dificilmente, percebermos essa tentativa de cerceamento de liberdade também, seja pela ideia de posse que um acha que tem sobre o outro (aqui caberia uma digressão sobre as relações de posse, mas por não ser o intuito desse texto, deixo em aberto), sejam pelas chantagens emocionais feitas. Em todos esses casos percebemos que a ideia em jogo é a mesma, ou seja, cerceia a liberdade como tentativa de manter o controle, seja por pensar que está protegendo, que sabe melhor sobre a vida, que tem a posse sobre o outro, que o outro é inexperiente, que a situação faz o ladrão, e outros n motivos que sempre encontramos para justificar essas coisas nas diversas relações que vemos por aí. Com isso, o relacionamento torna-se mais uma lista de “pode” e “não pode” a um relacionamento de reciprocidade e confiança mútua.
Na igreja (ah, a igreja), o cerceamento de liberdade ocorre, comumente, com o discurso do pecado, do bíblico, da voz do pastor, da cartilha do certo e errado, do pecado e não pecado e tantos outros preceitos que, no final das contas, faz o mesmo que os casos acima. Esse, talvez bem mais avassalador, visto que traz sobre si o discurso do divino. Afinal, se Deus falou, quem somos nós para discutirmos com Ele?
Mas então a ideia é não ligar para nada? Faz o que quiser, seja o que quiser, saia quando quiser, com quem quiser, onde quiser, serão essas as soluções para o cerceamento de liberdade? Acredito que não (não entrarei aqui no mérito do até que ponto há realmente controle sobre alguém, visto essa ser uma discussão bem longa que tornaria esse texto maior que já está, mas acho interessante discutir isso). Até mesmo porque, a meu ver, isso seria mais caracterizado como indiferença e, indiferença e liberdade, são coisas que não precisam estar relacionadas. O fato de ser indiferente não implica que deixo o outro livre, somente indica que não me importo. Se não me importo, tanto faz estar livre ou preso.
Jesus propõe outro caminho: o caminho do amor. E é interessante percebermos que todo amor traz consigo, visto ser próprio dele, a liberdade. Uma das características do homem, na tradição cristã, está que este foi feito à imagem e semelhança de Deus. Dessa forma, assim como Deus é livre, o homem também foi criado livre, com poder de escolha e decisão (calvinistas, me perdoem aqui). Assim, penso eu, todo cerceamento de liberdade do homem deve ser questionado e não pode vir de Deus.
O amor sempre deixa livre para fazer o que se quiser fazer, contudo aquele que ama faz as coisas baseadas no amor. A frase de Santo Agostinho: “ame a Deus e faça o que quiser”, mostra claramente a associação da liberdade com o amor e sua não relação com a indiferença. Se formos mais a fundo, poderemos perceber Paulo dizendo que “o amor de Cristo nos constrange”, ou seja, minhas atitudes frente ao outro não precisa do cerceamento da liberdade desse outro, mas estas são constrangidas pelo amor que tenho a esse outro que está diante de mim.
Por mais poético que seja e maravilhoso reconhecer isso, aplicar isso em nossas vidas é difícil. Afinal, vivemos em uma sociedade de posse e de exercimento de poder, na lei feroz do mais forte.
Deixar o outro livre, crer que o amor que esse tem por mim é o que o faz agir da forma que age, que o que faço pelo outro é baseado no amor que sinto por ele é custoso e, para muitos, soa como indiferença, mesmo que passando longe disso.
A meu ver o maior exemplo que temos está no Pai. Ele nos cria para relacionar-se conosco e dá toda liberdade para não relacionarmos com Ele. Sofre, sente ciúme, ira, clama por nós, e nunca, em momento algum, tira-nos o direito de ficar e partir e, dessa forma, mostra um amor que deixa livre sem ser indiferente para conosco.
Percebemos que o poder do amor mostra-se totalmente diferente ao poder do sistema mundano. Enquanto o primeiro doa seu poder totalmente, deixa livre e nos constrange, o segundo quer mais poder, cerceia a liberdade de todos e nos escraviza.
O novo mandamento de João 13:34: “que vos ameis uns aos outros como eu amei a vós” tem grandes implicações para nós. Uma delas, talvez a principal, é a liberdade do outro.
Pensemos…
Fabrício Veliq
30.01.2014 – 08:33