Qual a liberdade que pregamos?
Fácil e desejável é falar sobre a liberdade e, de alguma forma, todos e todas a pregam e a almejam para si e para os outros em seus discursos. Provavelmente, nenhum de nós conheça alguém que se diga totalmente contra a liberdade. Tanto teólogos quanto filósofos ao longo da história trataram a respeito desse tema, uma vez que falar do humano implica em falar sobre liberdade.
Dentre os teólogos que escreveram sobre essa questão, Jürgen Moltmann, protestante do século XX, está entre eles. Em seu pensamento propõe três dimensões acerca do conceito de liberdade, a saber, liberdade como domínio, como comunhão e como futuro.
A liberdade tratada como domínio, provavelmente, seja a mais comum. Nesse caso, temos a ideia de que livre é aquele que não é dominado por ninguém, é aquele que vence e subjuga, sejam aos outros, seja à sua própria vontade, sejam às determinações internas e externas a si. Embora a ideia do subjugar remeta a um período das diversas guerras relatadas da antiguidade, se entrarmos no período do advento do liberalismo burguês, perceberemos que a imagem da liberdade como domínio ainda se faz presente, agora sob a condição da igualdade dos direitos para todos. Uma vez que todos os seres humanos são livres e, como livres todos e todas devem ter os mesmo direitos, o limite da minha liberdade agora se encontra na liberdade do outro e, dessa forma, cada um reivindica sua própria liberdade respeitando a liberdade do outro, ou seja, em última análise, essa ideia de liberdade também traz, em si, também, a ideia do domínio. Que a ideia da determinação da liberdade individual trazida nesse momento tenha em si o germe do individualismo característico de nossa sociedade parece-nos bem claro, porém não entraremos nessas considerações por fugir ao tema do texto.
A segunda determinação possível é a liberdade como comunidade. Nesse sentido, minha liberdade consiste em reconhecer e ser reconhecido pelos outros, e se manifesta quando compartilho minha vida com minha comunidade e essa comunidade compartilha sua vida comigo, em abertura de uns para com os outros. Assim, percebemos uma nova forma de se ver a relação entre sujeitos livres. O outro passa a ser complemento de minha liberdade e não mais concorrente dela ou, seguindo na linha de Hegel, a liberdade subjetiva se encontra em reconhecer o universalmente necessário, de maneira que o máximo de minha liberdade está no reconhecimento daquilo que devo fazer para a universalidade.
A terceira determinação proposta por Moltmann é a da liberdade como futuro. Nesse sentido, a liberdade tem a ver com a relação entre sujeito e projeto, sendo assim uma iniciativa criadora. A liberdade como futuro está voltada para o Reino de Deus que há de vir e, dessa forma, motivada pela esperança, exerce sua função criativa de transformação do mundo.
Se olharmos com cuidado percebermos que na ideia moltmanniana há uma espécie de tendência da liberdade, de maneira que “a liberdade como dominação só será superada em favor da liberdade como comunhão quando a liberdade enquanto futuro comum se apresentar em primeiro plano” (MOLTMANN, 2011)
Mas teria esse pensamento alguma implicação na práxis cristã que constantemente clama que Deus é o Senhor sobre toda a terra? Será que o discurso cristão acerca da liberdade tem se alinhado com aquilo que as Escrituras nos mostram acerca das experiências de libertação do povo de Deus? Se observarmos ao longo das narrativas de libertação do texto bíblico, seja a do êxodo com relação ao rei tirano, seja a da ressurreição de Cristo com relação à tirania da morte, em ambas podemos perceber um caráter muito interessante com relação ao senhorio de Deus. Tanto o Deus que liberta Israel no Egito quanto o Deus que ressuscita, na força do Espírito, a Jesus dentre os mortos, a compreensão de Deus como Senhor se dá por seu caráter libertador e não por seu caráter de dominador nas linhas dos déspotas dos tempos em que os textos foram escritos. Daí se segue que o senhorio de Deus deve ser visto como um senhorio que conduz à liberdade e abre espaço para que a humanidade possa se realizar e não um senhorio que subjuga ao vencido.
Infelizmente, no meio evangélico atual temos percebido que grande parte das denominações tem tratado o senhorio de Deus como o senhorio dos déspotas do Antigo e do Novo Testamento. Nas pregações se manifesta o discurso do “nosso deus” contra o “deus deles”, onde, geralmente, o “deles” quer dizer os “marginalizados”, os “vagabundos”, os “promíscuos”, os “não santos”, os “subversivos”, etc. Esse discurso está totalmente de acordo com o princípio do Divide et impera do Império Romano, em que primeiro se isola, divide e separa para depois dominar e subjugar aqueles que foram vencidos. Nesse meio a salvação tem mais a ver com a mudança de religião do que a vida tocada pela liberdade do Espírito.
Diante disso, recuperar a liberdade em perspectiva cristã e protestante, significa regressar ao Deus narrado nas Escrituras, percebendo-o como o Deus que liberta e abre espaço para a liberdade humana, significa protestar contra todas as formas de opressão que há em nossa sociedade civil e religiosa, significa lutar, com vistas no Reino de Deus que há de vir, contra os falsos discursos de liberdade que escravizam e tornam as pessoas dependentes de líderes e que nada tem a ver com o Deus libertador que promove a comunhão, significa agir como nosso Pai, compartilhando nossa vida com nossa comunidade e promovendo um espaço de liberdade para todos que chegam até nós.
Devemos, assim, sempre nos lembrar que a forma como entendemos a liberdade nos mostra a visão de Deus que temos e a visão de Deus que temos implica em nossa práxis diante da sociedade em que vivemos.
Da série dos textos para o portal Dom Total. Link: http://domtotal.com/noticia.php?notId=1053331