Quem, dessa forma, se dispõe a ser amigo de Deus?
Já nos vos chamo mais servos, mas amigos (João 15,15). Esta fala, narrada pelo Evangelho de João dentro dos discursos de despedida de Jesus, revela algo muito interessante para se pensar a relação com Deus.
Este, em grande parte do imaginário popular, é pensado como um Senhor Todo-Poderoso, sisudo, e que exige de seus servos a obediência irrestrita e, caso isso não seja alcançado pelo/a tal servo/a, esse mesmo Senhor o/a punirá por não ter feito a sua vontade. A imagem de um rei típico das antigas monarquias, para o qual sua ordem teria que ser cumprida de toda forma ainda permeia a fé de muitos em relação a Deus.
Por mais que vários/as dizem que Deus é Pai amoroso e, alguns, até mesmo conseguem imaginar Deus como Mãe amorosa, ainda permanece na mentalidade certa ideia de um/a déspota que pode fazer o que quiser e, por isso, todo temor e tremor se faz necessário diante dele/a.
Por outro lado, o texto de João nos remete a um novo tipo de relação, que foge totalmente desta imagem de Deus como déspota. Jesus chama seus discípulos de amigos, porque ele os deu a conhecer tudo que o Pai lhe havia dito. Esta relação ressaltada por João, por sua vez, não é algo novo no texto bíblico. Deus Pai/Mãe, no Antigo Testamento, também considera um homem como seu amigo. Tiago, em sua carta, nos conta que Abraão creu em Deus e isto lhe foi imputado como justiça de maneira que foi chamado amigo de Deus (Tiago 2,23).
Ser amigo/a de alguém não é algo que acontece da noite para o dia. Antes, é preciso disposição para estar junto, conversar, e ouvir o que a outra pessoa tem a dizer. Da mesma forma, uma verdadeira amizade se constrói com o tempo que é investido nela. Pessoas que não conversam entre si dificilmente desenvolverão uma amizade; casais que não passam tempo juntos, dialogando sobre os medos, anseios, alegrias, prazeres etc de cada um, dificilmente terão relacionamentos que resistem depois que o período de paixão passa. Amigos que se distanciam, não raras vezes, depois de certo tempo, não têm mais assunto em comum, dentre tantos outros exemplos que poderia se citar de como os investimentos de energia, tempo e disposição são fundamentais para o desenvolvimento e manutenção da amizade para com qualquer pessoa.
Os próprios discípulos, como mostra a narrativa evangélica, conviveram com Jesus por cerca de 3 anos, comendo junto, sofrendo junto, sendo perseguido junto, alegrando-se mutuamente e até mesmo tendo desavenças entre si e, isso, sem dúvida, é aquilo que os colocam na categoria de amigos, uma vez que estes são aqueles que conhecem de perto a pessoa de Jesus. Da mesma forma em relação a Abraão, o texto bíblico nos mostra que seu relacionamento com Deus não se deu de forma rápida e passageira, mas seus diálogos com seu Deus eram constantes, até mesmo para questioná-lo sobre alguma decisão que este queria tomar, o que o caso de Sodoma e Gomorra deixa bem claro.
Com isso em mente, é possível perceber que Deus, como mostrado na narrativa evangélica deseja que tornemos seus amigos e suas amigas como fruto da convivência que temos para com ele, o que, necessariamente, impacta a forma de se viver no mundo, tendo a sua causa como também a nossa.
Da mesma forma de que quanto mais se aproxima de alguém há maior tendência de se assemelhar com esse alguém, assim também o aproximar-se de Deus faz com que nos tornemos cada vez mais semelhantes a ele, sofrendo com o que lhe faz sofrer e lutando pelas suas causas que, como nos mostra o texto bíblico e vida de Jesus, são a luta em favor dos desfavorecidos, em favor dos pobres, contra os sistemas que geram morte na sociedade; a promulgação da vida e libertação para os que estão presos; a misericórdia, a compaixão e o amor.
Para ser amigo de Deus é preciso estar disposto a sofrer Deus e sua causa, bem como investir tempo em convivência com ele, o que implica, necessariamente, investir tempo na convivência com as pessoas, ouvindo suas alegrias e tristeza, buscando sempre ser instrumento de Deus para que a libertação e a vida possam se fazer presente no mundo.
Quem, dessa forma, se dispõe a ser amigo de Deus hoje?