Um Cristianismo que se arma continua sendo cristão?
Em tempos tão polarizados quanto este em que vivemos no nosso país, aliando-se à grande hegemonia cristã predominante em nosso contexto, é sempre possível que surjam discursos que não se coadunam com o Evangelho e, curiosamente, são suportados por bases bíblicas aleatórias. Contudo, algo que é sempre importante de se lembrar é de que todo texto, retirado do seu contexto, torna-se pretexto para se dizer o que quiser. Essa máxima, embora muito apreciada por todos que a ouvem, constantemente é negligenciada e usada para fazer diversos tipos de afirmativas de cunho cristão.
Dentre os diversos temas em voga em nosso país, recentemente o tema da violência surge com força, principalmente, em época eleitoral. Diante desse cenário, não é difícil encontrar os discursos que pregam a violência como solução para as questões da sociedade e da criminalidade. Frases como “tem que matar mesmo”; “bandido bom é bandido morto” etc são usadas por diversas pessoas que se dizem cristãs e, para justificar tais posições, tomam alguns versículos bíblicos aleatórios e fora de contextos. Os mais cotados são os textos do Pentateuco, em que está em voga a famosa lei de talião, do olho por olho e dente por dente e, nesse sentido, se alguém mata, tem que morrer e se alguém fere alguém deve ser ferido, bem como o texto do Novo Testamento, em que Jesus diz para Pedro para pegar em espadas no evento narrado em Lucas 22.
Que os textos do Antigo Testamento e a lei de talião não deveriam nem ser considerados para esse problema pelo viés cristão parece muito claro. Afinal, o ensinamento de Jesus segue justamente na contramão disso. “Eu, porém, vos digo” lido constantemente no sermão do monte, mostra o caráter de desvinculação proposto por Jesus das antigas ordenanças do Antigo Testamento. No lugar da lei de talião, deve-se reinar, a partir de agora, a lei do amor, “para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos” (Mt 5,45). Nessa nova proposta, a lei da vingança não faz mais sentido e, consequentemente, não deveria fazer parte do discurso cristão que, obviamente, deve seguir os ensinamentos de Jesus.
O texto de Lucas 22, por sua vez, é usado como tentativa para justificar a violência nos ensinamentos de Jesus. Seria como se dissesse: “tá vendo, Jesus mandou os discípulos se armarem e, por este motivo, nós também, cristãos, devemos ser a favor do porte de armas etc”. Fazer isso, todavia, é tirar o texto do seu contexto sem atentar que, se Jesus realmente tivesse dito isso no sentido literal estaria indo contra todo seu ensinamento para com seus discípulos ao longo dos 3 anos de convivência, o que tornaria o próprio Jesus um hipócrita, por estar fazendo algo que ele mesmo condenou anteriormente. Assim, pela própria coerência da pregação de Jesus, o texto deve ser lido em sua forma de parábola, significando que um novo tempo está por vir sobre os discípulos, um tempo de violência e perseguição contra eles, sendo necessário que estivessem preparados para resistir a isso, não com armas (afinal, 2 espadas para 11 homens mostraria Jesus como péssimo estrategista de guerra), mas com o próprio Evangelho.
Dessa forma, o texto de Lucas também não se sustenta quando usado para justificar o uso da violência, ou o porte de armas. Deve-se sempre lembrar que a palavra de Jesus e sua pregação sempre foram voltadas para o amor, sendo este, conforme nos diz a primeira carta de João, aquilo que o próprio Deus é.
Pelo exemplo de Jesus e pela narrativa evangélica, bem como tendo como base todo o Novo Testamento, a violência não se mostra como aquilo desejado por Deus para a conduta na sociedade. Seguir o exemplo de Cristo, assim, se mostra dirigir-se na contramão de qualquer discurso que a incita, sendo isto também parâmetro para dizer se algum discurso é ou não cristão.
Todo discurso que promove a violência não é ancorado nos ensinamentos de Jesus e todo aquele que o prega não compreendeu ainda a mensagem do Evangelho que liberta e vence, não pela força da violência, mas pela fraqueza do amor.
Em tempos de violência constante em nosso país, os/as cristãos/ãs não devem ser os que a propagam, antes aqueles/as que mostram que há outro caminho possível, em que a luta se dá de maneira diferente, não pelo uso das armas, mas pelos atos de amor consciente e engajado, denunciando as injustiças e as misérias, propondo um caminho que preze pela equidade de dignidade e condições para todos, de maneira que os vislumbres do Reino de Deus se faça presente na sociedade.