Deus acima de todos?
A questão cristológica sempre foi um grande problema para o Cristianismo. Desde os primeiros momentos daqueles/as que foram chamados/as seguidores/as do caminho, essas pessoas tiveram que lidar com a questão de explicar como que um sujeito histórico poderia ser chamado do Cristo que haveria de vir e cumprir os propósitos de Deus para o ser humano. Com o advento do Cristianismo enquanto religião consolidada, principalmente depois da conversão de Constantino, esclarecer essa salvação universal se tornou uma tarefa ainda maior. Afinal, com o Cristianismo se tornando uma religião imperial, também era necessário que seu alcance fosse tão abrangente como o daquele Império que agora se tornava cristão.
Com isso em mente, mostrar o alcance universal de Cristo pode ter duas perspectivas, sendo uma cristã, de acordo com os ensinamentos de Jesus, e outra não cristã, como aquela do Império Romano e dos diversos impérios cristãos que surgiram ao longo da história.
Comecemos com a perspectiva não cristã. A tentativa de mostrar a universalidade de Cristo e de mostrar que ele é a salvação de Deus para o mundo, por mais cristão que possa parecer no discurso pode se tornar extremamente não cristão na prática. Isso acontece quando se pensa a universalidade de Cristo em seu viés meramente exclusivista, restringindo a própria ação dele a um escopo meramente doutrinal e ideológico. Neste tipo de discurso é comum perceber certo triunfalismo e certo sentimento de superioridade por parte da religião cristã, de maneira que se pensa que somente os convertidos ao Cristianismo é que serão salvos e que toda pessoa que não professa essa fé cristã, consequentemente, merece a morte e o inferno.
Juntamente com esse discurso chega também uma proposta moralizante da sociedade, no sentido de pensar que há somente um modo certo de agir, que Deus é monolítico e que ele tem consequentemente seus padrões morais que devem ser seguidos independentemente da cultura em que esta fé é pregada. A Idade Média mostra muito bem esse tipo de cenário, em que certa visão de Deus é usada como parâmetro para dizer o que é certo e o que é errado na sociedade.
Com isso em mente, cria-se uma espécie de Imperador Universal, que à moda do imperador romano, requer que suas ordens sejam cumpridas e obedecidas, não importa onde ou como. Assim com o imperador estava acima de todos, em um Cristianismo universal agora temos um Deus acima de todos. Esse Deus, por sua vez, assim como o imperador, deixa de ser gracioso e se torna punitivo, sua paz vem por meio das guerras santas, seu amor é demonstrado somente aos que pensam da mesma forma que seus seguidores, de maneira que tudo o que é contrário é também uma ameaça a esse Deus. Nisso, não há espaço para as outras religiões, elas não são incluídas no grande plano da salvação de Deus, mas são vistas somente como agremiação de perdidos que carecem de ser resgatados do mal pelo “exército do Senhor da paz”. Que este tipo de discurso deveria ser automaticamente visto como distante do pensamento de Jesus nos parece claro, mas convém também mostrar de que maneira a universalidade de Cristo pode ser encarada de uma maneira cristã.
A boa nova pregada por Jesus, de acordo com as narrativas evangélicas, é de que Deus ama o mundo e se importa com ele de tal maneira que se encarna e torna-se um de nós para, assim, mostrar Deus como é e o ser humano como deveria ser. Essa mensagem, por sua vez, tem um alcance universal por abarcar em si todos os povos da terra, mostrando que o amor de Deus não seleciona aqueles e aquelas a quem ama, mas, como graça é constante doação e amabilidade.
Ao mesmo tempo, essa universalidade chama também à liberdade. Diante do amor de Deus, demonstrado em Cristo, há sempre a ação livre do ser humano para aceitar ou não a oferta de amor. De certa forma, só poderia ser assim, uma vez que todo amor que não aceita não ser amado não pode requerer para si o título de ser o amor perfeito.
Com isso em mente, podemos dizer que esse amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, de acordo com a fé cristã, não é exclusivo à fé cristã, antes inclui em si todas as nações e todas as religiões do mundo, por reconhecer que o Cristianismo é apenas uma das várias formas possíveis de se falar a respeito do mistério que o próprio Deus é. Isso faz com que todo pensamento discriminatório com relação às outras religiões seja inconcebível por aquele e aquela que professa essa fé cristã.
Contrariamente ao Deus acima de todos pregado por um Cristianismo exclusivista se coloca o Emanuel, Deus conosco, que não está acima de todos com seu rigor moral e pronto para contabilizar erros e acertos, mas está em nós, caminhando conosco e nos ajudando a nos tornarmos mais humanos e, consequentemente, mais próximos do próprio Deus.
A universalidade de Cristo pode ser pensada nessas duas formas. Na primeira, de maneira não cristã, se por cristão entendemos o seguimento de Jesus. Na segunda, de maneira concernente ao que os evangelhos falam a respeito daquele nazareno, que andava com os excluídos na Judeia do século I.
A universalidade de Cristo, de acordo com a fé cristã deve ser pensada como sua presença universal em tudo o que é vivo, porque o mundo foi criado por meio dele, de maneira que nada pode ser considerado como “fora”. Na encarnação essa universalidade se torna ainda mais tangível, porque pela fé reconhece-se que ele assumiu a humanidade em sua carne, mostrando assim, que toda carne, em todo o mundo é importante em si mesma e não enquanto pertencente a certo dogma religioso.
Ser cristão, então, não é pensar e pregar um Deus que está acima de todos, antes pensar em um Deus conosco, Emanuel, como nos diz o evangelho de Lucas.