Cristãos e cristãs em vidas duplas
Imagem: (Sergiu Nista by Unsplash)
As vidas duplas sempre foram assuntos muito interessantes para nossa sociedade. Uma busca rápida em qualquer site ou serviços de streaming nos mostra o quanto de filmes, séries e documentários existem e que tocam no assunto de um sujeito que vive em um país, exerce funções nele, mas, na verdade, trabalha como espião e está a serviço fiel a outro país que deseja minar o primeiro para obter alguma vantagem financeira, intelectual etc. Agentes da antiga KGB, FBI, Scotland Yard e tantas outras agências de inteligência trazem ainda muita audiência em nossos dias.
Não precisamos voltar tanto ao tempo assim (embora, alguns ainda hoje insistam que vivemos uma espécie de guerra fria tupiniquim, lutando contra o marxismo etc) para perceber que esse tipo de artifício, ainda hoje, é usado pelos grandes países e corporações mundiais para conseguirem mais lucro. Os casos de diversos “consultores” enviados pelos governos americanos para destruir economias no século XX e XXI, bem como os diversos crimes de espionagem industrial (como foi o caso do EUA e a Petrobrás) e cibernética (como o caso da Microsoft e a Oracle) estão aí para qualquer pessoa que queira pesquisar a seu respeito.
Passando do nível macro para o nível micro, esse mesmo comportamento de vida dupla também pode ser percebido em nosso cotidiano e não está tão distante da nossa realidade como os filmes deixam a entender. Quantos de nós não conhecemos algum caso de um marido que tenha uma amante durante anos e nunca foi descoberto ao mesmo tempo em que, diante da sociedade, seja visto como homem íntegro e fiel à esposa? Ou não ouvimos falar do pai, tio, primo que abusava sexualmente de filhas, sobrinhas e primas e ainda era considerado o exemplo da família com um bom coração “incapaz” de fazer tal atrocidade? Esses pequenos exemplos servem somente para mostrar que as vidas duplas não são somente da ordem de grandes países, mas estão presentes no dia a dia de diversas pessoas com as quais nos relacionamos.
Quando vamos para o ambiente do discurso e vivência da fé, isso também não é diferente. Mas, como essa relação é mais sutil, muitas vezes, essa vida dupla não é percebida nem mesmo por quem está inserido dentro dela. Um dos lugares em que isso mais se manifesta é nas posições a respeito das questões sociais cotidianas.
É comum em nosso país que as pessoas não vejam relação entre vida espiritual e vida social, de maneira que são muitos que se dizem cristãos e cristãs e pensam que uma coisa é estar bem com Deus, fazer as orações, cantar na igreja etc, e outra coisa é se posicionar politicamente e socialmente frente aos problemas do país, sem que essas coisas estejam interligadas. Com isso, não é difícil encontrar cristãos e cristãs que cantam todo domingo “Deus é amor e sua misericórdia dura para sempre” no culto ou missa matutina e na hora do almoço afirmam que “esses bandidos desgraçados devem tudo morrer mesmo” sem perceber que a letra do cântico diz exatamente o contrário.
Não seria essa desconexão e ausência de percepção das consequências da fé cantada, lida e ouvida uma consequência da vida dupla que vários cristãos e cristãs vivem em nossos dias, de maneira que de um lado, cultiva-se uma vida espiritual em que o importante é somente a forma como a pessoa se vê em sua relação com Deus, do outro, uma vida cotidiana, vivida na selva de pedra da sociedade para a qual essa de “amar vagabundo” não faz o menos sentido?
O Evangelho, porém, mostra que não é essa a mensagem anunciada por Jesus. Muito pelo contrário, diz que “nem todo que me diz Senhor, Senhor entrará no Reino de Deus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21), o que por si só já indica que essa dissociação entre vida espiritual e vida em sociedade não deveria fazer o menor sentido para quem se diz cristão e cristã.
O Evangelho deixa claro que a vontade do Pai é que se alimentem os famintos, que se ajudem os necessitados, que se lute para que haja justiça social, de maneira que os reflexos do Reino de Deus e da nova criação de todas as coisas já se façam presentes em nosso meio, onde aguardamos, em esperança, a plenitude de todas as coisas em Deus.
Assim, dizer-se cristão ou cristã e ao mesmo tempo ser a favor e pregar políticas públicas que geram a morte de indígenas, que destroem a natureza, que aumentam a pobreza e a desigualdade entre ricos e pobres na sociedade é não ter compreendido a mensagem de Jesus e um grande indício de se vive uma vida dupla em matéria de fé.