Texto bíblico: instrução ou lei?
Traduzir um texto é sempre uma tarefa árdua. Mais do que somente passar as palavras de uma língua para outra, envolve a dificuldade de tentar dizer o que o/a autor/a do texto quis dizer quando o escreveu. Uma tradução meramente literal leva a uma desconexão entre o texto traduzido e a mensagem que a pessoa que o escreveu gostaria de ter passado.
Assim, não é difícil de perceber que toda tradução já é, na verdade, uma interpretação. Em certa medida, como diria Heidegger, todo texto é uma interpretação do mundo dada por quem o escreve. No caso da tradução, isso se torna ainda mais latente, uma vez que na escolha dos diversos sentidos que uma palavra tem, a pessoa que traduz escolhe aquela que acredita mais se adequar tanto à mensagem que foi compreendida por ela, quanto à própria tradução de maneira que faça sentido para o/a leitor/a final.
Essa mesma premissa vale para o texto bíblico. Esse texto, escrito em hebraico e grego sofreu, ao longo de diversos anos, acréscimos, decréscimos, traduções e retraduções para diversas línguas e a partir de diversas línguas em diferentes contextos históricos. Consequentemente, diversos termos, se comparados com os idiomas originais, deturpam em grande medida os conceitos da época em que foram escritos. Talvez, um dos mais marcantes seja a tradução que se deu ao termo Torá.
É muito comum ouvir que esse termo quer dizer a Lei de Deus. Diversos versículos foram traduzidos tendo esse pano de fundo, tais como os salmos: “a lei do Senhor é perfeita e restaura a alma” (Sl 19,7), ou ainda, “Abra os meus olhos para que eu veja as maravilhas da tua lei” (Sl 119,18), e tantos outros textos nos quais a tradução traz o termo lei (Lex no latim) para o termo hebraico Torá.
No entanto, o conceito de Torá para o judaísmo não é o mesmo que o de Nomos do grego, e nem que o de Lex para a cultura romana. Enquanto a lei romana tinha a ver com o cumprimento das regras do direito romano e, nesse sentido, traz consigo um caráter processual próprio do direito, a Torá no judaísmo tem a ver com o ensino (tomando-se por base a raiz judaica dessa palavra), de maneira que a Torá é o ensinamento de Javé para seu povo, a instrução sobre a qual o povo deve lançar suas bases para se construir como nação desejada por Deus.
Nota-se com isso que essa simples mudança de palavra acarreta grandes diferenciações na maneira como se encara o próprio ensinamento contido no texto bíblico. Ao considerar que aquilo que Deus diz na sua palavra é uma lei que deve ser obedecida, cria-se claramente a ideia da condenação que vem sobre todos e todas que a desobedecem, sendo, portanto, o castigo merecido e devidamente aplicado.
Por outro lado, tomando o termo no hebraico, em seu sentido original, percebe-se que a preocupação do texto está em mostrar qual o caminho desejado por Deus, quais as bases sobre as quais ele deseja que o povo siga e passe adiante de geração em geração. Dessa forma, guardar a Torá no coração tem a ver com guardar os ensinamentos de Deus para o bem viver com relação ao próximo, a si mesmo e à natureza.
Para o cristianismo, por sua vez, Cristo é a verdadeira Torá, ou como Paulo disse: ele é “fim da lei”, quer consideremos esse fim como finalidade, ou como termo. Em outras palavras, Cristo é o verdadeiro ensino da parte de Deus acerca de quem ele é e acerca do que ele espera que o ser humano seja.
Não é difícil, portanto, perceber porque diversos cristãos e cristãs fundamentalistas preferem o termo lei ao termo ensino. Tendo-se a lei, em sua perspectiva romana, fica claro o que é certo e o que é errado; o preto no branco se faz presente de forma latente e a condenação dos desobedientes é muito facilmente atribuída.
Adotar o termo ensino ou instrução, por sua vez, traz outro tipo de comprometimento com o ser humano e com a própria natureza, ao mesmo tempo em que traz uma nova gama de possibilidades interpretativas para os textos bíblicos e as diversas teologias que se fundamentam neles. Pressupõe, dessa forma, reconhecer que todos e todas estão em processo e em um caminhar, de maneira que é necessário ter paciência, perseverança e amor para os que não estão no mesmo lugar que nós em seu processo de aprendizagem, bem como reconhecer que nenhum ensinamento dogmático deve ser considerado como definitivo, podendo sempre ser ressignificado.
Assim, somente um cristianismo que compreende Cristo como verdadeiro ensino da parte de Deus é capaz de fazer diferença no mundo, lutando pelas causas que ele lutou, colocando-se ao lado dos pobres e dos marginalizados, batalhando pela preservação ambiental, contra um capitalismo que destrói a natureza que visa o lucro, vendo em cada ser humano um ser digno e a natureza como obra de um Deus amoroso.