Por que um Deus que deixa livre incomoda tanto alguns cristãos atuais?
Desde o movimento de Jesus que aconteceu na Galileia do primeiro século, até os dias atuais, sempre houve tentativas de reprimir pessoas que pensavam diferente daquilo que as lideranças religiosas dominantes falavam. Jesus mesmo, como nos mostram as narrativas evangélicas, foi um dos perseguidos pelos religiosos de seu tempo, que não aceitavam que alguém poderia se dizer filho de Deus, ao mesmo tempo em que tocava os impuros, conversava com as prostitutas e comungava a mesa com publicanos e pecadores.
Nos primeiros séculos da era cristã, da mesma forma, foram diversas as lideranças que queriam definir quem poderia ser chamado de cristão ou cristã, de acordo com o comportamento que era esperado da parte deles, surgindo, assim, diversas normas de condutas que deveriam ser seguidas para que alguém pudesse ser considerado realmente um servo do Senhor Jesus Cristo. A exacerbação disso, como se sabe, ocorre na Idade Média, em que se instaura todo um regime que tem a Igreja como detentora do poder secular e espiritual e, por isso, mesmo, aquela que dita as regras que devem ser obedecidas por parte daqueles e daquelas que não querem ser mortos por causa de seus pecados. As torturas, mortes e atrocidades feitas nesse período em nome de Deus revelavam o quão pernicioso e maléfico é um regime que se baseia na figura divina como um monarca que precisa ser obedecido a qualquer custo.
Na Idade Moderna, após um grande período de secularização, em que a Igreja perde seu lugar de detentora do poder secular, percebe-se também uma grande parcela do cristianismo tentando reaver sua posição de “baluarte da verdade” como outrora. São conhecidos os documentos do Vaticano I que iam contra o Modernismo e as teorias perniciosas para o bom andamento da sociedade e tantas outras posturas que se mostravam, para olhares mais atentos, como tentativa de retomada do poder sobre a sociedade. O movimento evangélico de cunho norte-americano que chega ao Brasil por volta do início do século XX também traz uma perspectiva semelhante no que tange à necessidade de que pessoas se voltem para a “verdadeira vontade de Deus” para a humanidade que, curiosamente, era que todos e todas se convertessem ao cristianismo.
Toda essa ênfase que se deu ao longo da história cristã na obediência que acarreta bênçãos e na desobediência que acarreta condenação, fez nascer um cristianismo que, em diversas medidas, teme a liberdade e adora a lei, querendo, dessa forma, legislar sobre tudo, todos e todas, independentemente se foi chamado para a conversa ou não.
Assim, não dificilmente vê-se o cristianismo querendo legislar sobre questões como o controle de natalidade por parte de casais, a homossexualidade, aborto, pautas identitárias, questões de educação nas escolas etc, tendo como base uma “forma correta” que precisa ser obedecida porque foi desejada por Deus.
No entanto, o Evangelho pregado por Jesus, bem como o texto bíblico que se revela no Novo Testamento, deixa bem claro que o Deus pregado pelo cristianismo não é o das leis, mas tem como definição, como mostra a primeira carta de João, o ser amor. Sendo amor, pressupõe a liberdade que deixa livre para, até mesmo, ser rejeitado. Definir Deus como amor implica, necessariamente, tonar esse amor o critério para toda verdade e juízo, de maneira que é possível dizer que tudo que é feito em amor deve ser considerado como vindo da parte de Deus e, consequentemente, tudo que não é feito em amor, não pode vir da parte desse mesmo Deus. Com isso, não é mais uma lei de certo e errado que está em jogo, definindo o que é pecado e o que não é, mas se determinada ação é feita em amor ou não.
Assim, o Deus que chama à liberdade é um Deus muito mais difícil de ser seguido, uma vez que tem um caminho muito mais estreito proposto, que é o caminho do amor. Contrariamente ao Deus da lei, que tem suas ordens que dizem “sims” e “nãos” de forma taxativa, o Deus amoroso, revelado em Jesus Cristo, mostra que se algo é feito em amor recebe o seu “sim”, o que vale para todas as questões da atualidade.
Dessa forma, não é de se espantar que o Deus da liberdade seja muito mais temido pelos fundamentalistas do que o Deus da lei, uma vez que eles veem no primeiro uma pregação libertina, enquanto no segundo os valores eternos de Deus. Dessa forma, pontuar que o discurso do Deus da lei serve àqueles e àquelas que desejam, por meio do uso da religião, oprimir, castigar e punir as pessoas que pensam diferente do que aquilo que consideram como verdadeiro é uma tarefa teológica e profética importantíssima a ser efetuada por cristãos e cristãs contemporâneas.
O amor é mais forte que a lei e o Deus que liberta da morte revela em Jesus que esta não possui a última palavra. Assim, é tarefa teológica pregar um evangelho da liberdade que tem o amor como bandeira, levando, consequentemente, uma boa nova que gera vida àqueles e àquelas que são mortos fisicamente e espiritualmente por pregações que os/as tratam como escória, malditos/as e desviados/as.