A questão da verdade como fundamento da intolerância
E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará (Jo 8,32).
Toda pessoa cristã em algum momento na vida já ouviu esse versículo em alguma missa ou em algum culto ao longo da caminhada cristã. Até mesmo nas últimas eleições esse versículo foi usado pelo atual presidente para angariar para si pessoas do movimento evangélico, ainda que seus discursos e posturas se mostram muito contrariamente aos ensinamentos de Cristo.
A questão da verdade sempre foi uma temática para o discurso religioso. Afinal, estar do lado da verdade é sempre o desejado por todas essas religiões e o que fundamenta o discurso religioso é também o discurso a respeito da verdade. Logicamente, com o cristianismo não é diferente[1].
Embora esse seja um dos textos mais usados pelo cristianismo para assumir certa posição de detentor da verdade absoluta, se olharmos atentamente para o texto, é possível perceber que falar que Jesus é a verdade diz, ao mesmo tempo, muita coisa e nada. Como cristãos, cremos que Deus se fez humano. Assim, é um dos princípios básicos do cristianismo afirmar que Deus é uma pessoa. Isto, por sua vez, deveria nos fazer perceber que dizer isso já é, em si, abrir mão de todo conhecimento absoluto da verdade. Se a verdade é uma pessoa, como afirma o cristianismo, pergunta-se: quem conhece uma pessoa de forma absoluta? Por mais que convivamos com as pessoas, com entes queridos, com nossas esposas, esposos, filhos, mães, pais etc, não importa o quão próximo sejamos e o quanto conhecemos da pessoa com quem convivemos, sempre haverá algo ali que não é conhecido e não se encerra nas definições que podemos fazer a respeito da pessoa com quem convivemos.
Junta-se a isso o fato de que Jesus é judeu e, como sujeito histórico, fala condicionado pelas perspectivas de seu tempo. Como falamos mais acima, a verdade no judaísmo é medida de acordo com o cumprimento da vontade de Deus. Em outras palavras, falar que Jesus é a verdade tem a ver com dizer que nele se cumpre a vontade de Deus, e não, que ele traz a aura da verdade absoluta.
O cristianismo, dessa forma, não deveria ter a pretensão de ser o detentor da verdade, antes ser aberto para a novidade que cada pessoa e situação traz consigo, reconhecendo, assim, que a verdade do qual fala é de um modo de vida e não em nível absoluto e conceitual, uma vez que Deus, sendo pessoa, não se encerra em conceitos.
A verdade é sempre em perspectiva. Para exemplificar isto, basta uma garrafa térmica, com cada lado de uma cor, duas cadeiras e uma mesa. Ao se pedir para quem está do lado direito da mesa descrever a garrafa, sua descrição será a partir do que ele está vendo e descreverá a cor do seu lado da garrafa. Quem está do lado esquerdo, todavia, descreverá outra cor, totalmente diferente daquela descrita pela outra pessoa. De nenhum modo podemos dizer que um dos dois está certo ou errado, uma vez que cada um fala da sua própria perspectiva e com o conhecimento que tem em determinado momento.
Com toda essa digressão, podemos agora ponderar o porquê a verdade ser um dos motivos da intolerância. Talvez o motivo já tenha ficado claro, afinal, se tenho o conhecimento da verdade absoluta, por que, afinal de contas, devo eu tolerar aquele que é diferente? Por que devo eu aceitar aquilo que vai contra a verdade última? Rejeitar a verdade é um sacrilégio, algo que deve ser combatido e, aquele que se opõe a ela deve ser, portanto, destruído e eliminado, para que o mal não se espalhe e contamine a todos e todas que estão em sua volta, corrompendo assim, a sociedade querida pela divindade.
A pretensão de verdade absoluta se mostra, assim, como uma das fontes de alimentação da intolerância religiosa. Percebemos isso em nosso país, principalmente ao ouvir o que muitos de nós, cristãos, falamos a respeito das outras religiões, principalmente as de matrizes africanas.
Não é difícil ouvir dizer que as religiões orientais e de matrizes africanas não passam de crenças, não sendo uma fé genuína, uma vez que esta só pode vir dentro do discurso da verdade cristã. Esse preconceito é ainda maior no que tange às religiões de matrizes africanas que constantemente são classificadas como diabólicas por algumas denominações cristãs, enquanto as de matrizes orientais são vistas como possuidoras de um caráter mais filosófico.
Essa pretensão de verdade que, obviamente, não é correspondida por parte de uma sociedade plural, se torna motor da intolerância e geram os diversos casos com os quais começamos essa nosso artigo. Assim, o cristianismo constantemente usa a verdade como arma de destruição e não como palavra que liberta. No caso de diversas religiões, em sua leitura de João 8,32 (“E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”), a mensagem seria: e conhecereis a verdade dogmática do Cristianismo[2] e esta destruirá aquilo em que você crê. Infelizmente, uma realidade em nossos dias e em nosso país que, curiosamente, se diz cristão.
[1] A partir desse ponto, reproduzo parte do artigo escrito por mim, intitulado Da intolerância ao diálogo: um caminho necessário. In: Revista Identidade!, v. 24, n.1, p. 126-136. Disponível em: http://periodicos.est.edu.br/index.php/identidade/article/view/3597/3163
[2] Nesse ponto é importante ressaltar que nem tudo no cristianismo é um dogma a ser seguido, havendo grande abertura para novas formas de se propor a fé e as vivências dentro do próprio cristianismo.