Engano e atração: faces dos fundamentalismos religiosos
O fundamentalismo religioso em geral e o cristão em particular não é algo novo, que surgiu agora no século XXI. O próprio texto bíblico mostra que a sociedade judaica na qual Jesus viveu possuía uma classe de fundamentalistas religiosos que se consideravam como donos da moral e dos bons costumes ditos por eles como necessários para agradar a Deus.
Todos os Evangelhos narram os diversos embates ocorridos entre Jesus e os fundamentalistas religiosos do judaísmo daquele tempo, mostrando que a mensagem de Jesus ia de encontro justamente àqueles e àquelas que estavam longe do templo por serem considerados impuros e não dignos. Ao mesmo tempo, narram que os verdadeiros cegos, aqueles e aquelas que não compreendiam o Reino de Deus que se mostrava por meio de Jesus eram na verdade os próprios líderes religiosos, que devido aos seus rituais se achavam mais pertos de Deus. O Evangelho de Marcos deixa esse ponto muito claro em diversos capítulos.
Na Idade Média, quando o cristianismo se transformou em religião de estado, esse fundamentalismo atingiu o seu ápice, visto que não se tratava somente de uma religião regional, antes, a de um Império e, dessa forma, com poder de alcance bem maior do que os antigos fundamentalistas judaicos. As perseguições a todos e todas que não se encaixavam nas normas morais que eram consideradas necessárias para se agradar a Deus por parte das lideranças religiosas eram comuns e a própria história mostra esse capítulo lastimável do cristianismo.
Com o advento da Modernidade e toda crítica que foi feita às instituições religiosas no Ocidente, bem como o processo de separação entre Igreja e Estado, o fundamentalismo religioso passou a ser um movimento que buscava o “retorno” àquilo que considerava como vontade de Deus, sendo o mesmo discurso que acontece também na contemporaneidade.
Diante de um discurso de que a sociedade perdeu seu rumo, que caiu em pecado e que por isso é necessário que se retome às antigas práticas de obediência, penitência, humilhação etc para que a nação possa ser aceita por Deus novamente, muitas pessoas cristãs foram levadas a acreditar que o retorno ao Evangelho seria um retorno às normas morais definidas por algum grupo hierárquico, seja católico, seja evangélico.
Ancorados em leituras literais do texto bíblico, é muito comum que esses movimentos arroguem para si o status de “guardião da fé verdadeira”, e, portanto, como os únicos que realmente compreenderam o que Deus quer para seu povo. Não é de admirar que são os movimentos fundamentalistas cristãos que atacam os terreiros de candomblé, ou perseguem pais e mães de santos por acharem que essas pessoas são filhas do diabo, ou ainda que propõem agendas que são contra os homossexuais, por acreditarem que dois textos isolados tirados do texto bíblico servem para pautar as questões de gênero e sexualidade no século XXI.
Ao mesmo tempo, são diversos os movimentos fundamentalistas que, se por um lado pregam uma agenda moral e de santidade extremamente pesada, pelo outro estão envolvidos com o tráfico de drogas e de influência (basta ver os narcotraficantes evangélicos que comandam favelas no Rio de Janeiro ou padres, pastores e pastoras que induzem seus fieis nas eleições), ou ainda com corrupções nas esferas políticas e judiciárias (bastando para isso observar que inúmeros milicianos se dizem evangélicos ou servos do Senhor, ou ainda procuradores públicos que usam um discurso de santidade e de jargões e cometem ilegalidades processuais que ferem o princípio da justiça em um estado de direito), vivendo, assim, em mundos paralelos.
O fundamentalismo religioso atrai porque traz sempre a ideia de que há uma fórmula a ser seguida que garante um lugar no céu, ou um acesso exclusivo a Deus, ou ainda estar presente na lista VIP celestial, o que de dá uma credencial de pessoa melhor, mais justa e mais pura numa sociedade corrompida. A aura de santidade que envolve todo discurso fundamentalista se baseia na certeza de que este tem de estar mais perto de Deus.
Porém, ao se voltar ao exemplo de Jesus e ao seu ensino que se encontram nos Evangelhos, é possível perceber que Jesus nunca pregou um fundamentalismo religioso ou moral. Muito pelo contrário, ele mesmo era um péssimo exemplo de moral, foi chamado de amigo de publicanos e pecadores, glutão, bebedor de vinho, foi considerado como uma pessoa perigosa, que questionava as autoridades religiosas, um criminoso que se revoltou contra o domínio de César e por isso foi entregue à morte. Em tempos contemporâneos, diversos pais e mães que hoje se dizem cristãs não deixariam seus filhos e filhas andarem com alguém como ele. Sua preocupação sempre foi para com os pobres e excluídos da sociedade, visto considerar que o Reino de Deus era revelado aos grupos minoritários, pois esses eram os capazes de compreender.
Diante de um cenário em que se cresce o fundamentalismo religioso cristão em nossa sociedade é tarefa cristã e teológica lembrar de que a mensagem cristã e a mensagem do Evangelho anunciado por Jesus não se coadunam com quaisquer fundamentalismos.