Cristãos e cristãs em mundos paralelos
Uma das características dos movimentos pentecostais é sua enorme preocupação com a vida após a morte e com o julgamento final que Deus trará sobre as nações. Isso se manifesta constantemente nas diversas pregações, bem como nos diversos cânticos que compõem os cultos pentecostais, de maneira que é muito difícil ir a alguma igreja desse movimento e não ouvir esse tipo de discurso.
Como consequência, a preocupação a respeito da vida espiritual se torna imprescindível para toda pessoa que se diz fiel à proposta cristã. Essa vida deve ser cuidada, alimentada, provada, devendo também resistir às tentações enviadas pelo diabo para que não se caia nelas, a fim de não comprometer a santidade que se deve manter diante de Deus. Santidade essa, que é garantidora de que no julgamento final tal pessoa receberá o galardão como recompensa da vida que viveu na Terra, dando testemunho a respeito de Cristo.
O testemunho, por sua vez, deve se manifestar por meio das atitudes de santidade e posturas condizentes com uma suposta postura que se acredita que Jesus teria, o que, na maioria das vezes e de forma errônea, recai sobre questões de usos e costumes e questões de cunhos morais fundamentalistas. Com isso, não é de se espantar que na maioria das igrejas pentecostais brasileiras se encontrem pessoas que acreditam na literalidade do texto bíblico, pregando essa literalidade como justificativas para pautas morais conservadoras. Sob o discurso do “Está escrito” e “Deus disse em sua Palavra” condenam tudo aquilo que foge de uma moral puritana, colocando essa moral como consequência da vida em santidade e a santidade como espelho dessa vida moral. Com isso, percebe-se um círculo vicioso: é preciso estar em santidade, mas essa santidade é percebida por meio do conservadorismo moral, que por sua vez, leva à santidade requerida por Deus.
Diante desse círculo, que nasce com uma preocupação a respeito da vida espiritual santa que se deve ter, não é difícil encontrar pessoas cristãs vivendo em mundos paralelos, como se existisse um mundo espiritual, com suas regras, moralidade etc, e um mundo físico, no qual se trabalha e vive o cotidiano, sendo o primeiro mais importante do que o segundo, uma vez que o mundo do cotidiano é visto por muitos como somente uma fase que precisa se passar para atingir o tão esperado céu.
Essa postura, no entanto, mostra-se como extremamente perigosa e como um banquete para charlatões da fé que desejam manter o seu domínio sobre as pessoas que não tem conhecimento sobre a fé cristã e que acreditam que o pastor, a pastora ou o padre são as vozes de Deus no mundo. Sob o discurso de que são enviados por Deus e devem ser seguidos sem questionamentos, visto estes serem indícios de falta de fé, os/as charlatões induzem seus fieis a não se preocuparem com as questões políticas, sociais, econômicas e culturais da sociedade em que vivem, por considerá-las como “coisas do mundo” que devem ser rejeitadas e são empecilhos para a vida em santidade requerida por Deus.
O discurso de preocupação com a vida espiritual, dessa forma, gera cristãos e cristãs apáticos e que não se envolvem com a sociedade visando sua transformação estrutural. No lugar, acreditam que Deus está preocupado com pautas morais e que são elas as garantidoras de que Jesus está sendo pregado e compreendido. Esquecem-se de que Jesus foi um péssimo exemplo de moral na sua sociedade, condenado justamente pelos líderes religiosos do seu tempo que viam nele um “glutão e bebedor de vinho”, e alguém que “caminha com pecadores e come com eles”.
O Reino de Deus pregado por Jesus não tem a ver com pautas morais e listas de pode e não pode. Muito pelo contrário, tem a ver com a luta pela justiça para com os injustiçados, pelo direito dos pobres, pela igualdade social e pelo amor caridoso e fraterno entre irmãos e irmãs, uma vez que todos e todas são filhos e filhas do mesmo Deus.
Em Jesus se percebe que não há vida espiritual que não seja também mundana e que não toque a realidade do mundo visando sua transformação estrutural. Todo discurso que visa somente uma preocupação com a vida pós-morte se mostra como ameaça ao testemunho de Cristo e do anúncio do Reino de Deus que há de vir.
O chamado de Cristo nunca foi para se viver num mundo paralelo e a pregação de Jesus mostra que nunca foram pautas morais as definidoras de santidade e comunhão com Deus. Muito pelo contrário, é o amor dedicado a cada um e cada uma que mostra que somos discípulos e discípulas de Jesus, de maneira que não há lista de pode e não pode, mas, como diz Agostinho, deve-se amar a Deus e fazer o que se quiser fazer, justamente por ser o amor a medida cristã de todas as coisas.