Jürgen Moltmann: amante da vida
Recebi a triste notícia que Jürgen Moltmann faleceu ontem, 03.06.2024.
Moltmann é, para mim, um dos maiores teólogos do século 20. Seu livro Teologia da Esperança foi um marco na década de 60 e trouxe muitos novos insights sobre uma nova maneira de se pensar a escatologia cristã, ligada, não como comumente se pensa, a uma ideia de terror e destruição do mundo, mas na perspectiva da esperança, da “nova criação de todas as coisas”, termo que Moltmann tanto utilizava em seus escritos.
Moltmann fazia uma teologia preocupada com o mundo, que o olhava não com um ar de superioridade, como se ela tivesse a resposta para todos os problemas da humanidade, antes, como uma teologia que trazia uma nova mensagem de esperança, que ao olhar para o mundo, percebia que ele não estava de acordo com o propósito de Deus, e nesse sentido, não deveria ser condenado, antes, transformado pelo anúncio dessa mesma esperança que afirma que outro mundo é possível. Uma teologia que pregava que por experimentarmos as primícias da ressurreição de Cristo, devemos, ancorados na esperança da plenitude do Reino de Deus que há de vir, lutar para que o mundo se aproxime do projeto de Deus para ele.
No entanto, em nenhum momento Moltmann deu a entender em seus textos que pensava que seríamos nós os que traríamos o Reino de Deus para a Terra. Ele tinha a consciência de que nova criação de todas as coisas, a plenitude do Reino vinha do próprio Deus, e nós seríamos somente aqueles e aquelas que, pela fé na ressurreição, já experimentávamos, em nós mesmos, essa nova vida abundante que Cristo nos traz, devendo, portanto, vivê-la e anunciá-la ao mundo, na luta pela justiça aos desfavorecidos e pobres da terra.
Sua cristologia não se mostra diferente. Uma cristologia humana, que encara a humanidade e o sofrimento de Deus ao ver o sofrimento dos que sofrem, tendo como representante máximo o próprio crucificado. Na cruz estão presentes todas as pessoas sofredoras, e nessa cruz se manifesta o amor por excelência, que se mostra na entrega do Filho. Afinal, como afirma: “Se Deus fosse incapaz de sofrer em qualquer aspecto e, portanto, em um sentido absoluto, então ele também seria incapaz de amar” (MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã. São Paulo: Academia Cristã, 2014, p.288).
Sua pneumatologia é instigante. Volta-se para a vida diária, para a experiência que fazemos de Deus toda vez que fazemos uma experiência de vida, de maneira que não devemos pensar a pneumatologia como algo que trata de coisas meramente espirituais, ou em outras palavras, uma pneumatologia desencarnada. Afinal, como ele mesmo afirma, “não existem palavras de Deus sem experiências humanas do Espírito de Deus” (MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1991, p.15), sendo que “do espírito procede uma nova energia para a vida” (ibidem.). Nesse sentido, como mostrei em minha tese doutoral, a pneumatologia de Moltmann pode ser considerada como uma pneumatologia hermenêutica, ou seja, uma pneumatologia que diz algo para a sociedade contemporânea, saindo dos paradigmas que comumente a pneumatologia, até então, era tratada em seus diversos manuais.
Falei somente e brevemente da sua teologia sistemática neste texto. Muito poderia ser escrito a respeito de sua teologia política, pública e pastoral, havendo, até mesmo, diversos artigos, textos e livros sobre essa relação entre Moltmann e a sociedade. Tudo isso mostra a amplitude do pensamento de Moltmann ao longo de sua história teológica. Um teólogo amante da vida, que pensava uma teologia ligada às questões importantes da sociedade.
Como dito, estudei a pneumatologia de Moltmann em minha tese. Utilizei seu pensamento para propor um novo critério de discernimento para a questão do diálogo inter-religioso pelo viés da pneumatologia, tema pouquíssimo estudado no país, que até o momento, até onde eu sei, conta somente com a publicação do meu livro sobre a temática.
Durante meu doutorado, feito também em Leuven, na Bélgica, tive a oportunidade de me encontrar com ele, em sua casa em Tübingen. Enviei-lhe uma carta no inverno de 2016 sugerindo um encontro, e ele gentilmente me respondeu dizendo que estava quase sempre em casa, pedindo que eu o ligasse para agendarmos um dia. Viajei para Tübingen e nos encontramos no final de janeiro de 2017, em seu escritório, que ficava em um dos cômodos de sua casa. Uma sala cheia de livros, um lugar aconchegante. Conversamos por cerca de uma hora. Falei da minha tese sobre ele, ele me perguntou algumas coisas sobre minha vida, contou sobre sua própria vida e algumas experiências. Em dado momento, pedi que lesse uma interpretação que havia feito sobre uma questão de sua pneumatologia para ver se havia compreendido, e ele me falou que estava certa minha interpretação. No final, tiramos uma foto, ele autografou meu livro O Espírito da Vida e meu deu outro, o último que havia escrito: The living God and the fullness of life. Passado um ano e meio, após minha defesa, enviei a parte em inglês para ele. Gentilmente, me respondeu com outro livro e me parabenizando pelo trabalho.
Essa minha experiência pessoal com Moltmann, para mim, é inesquecível. Um teólogo de sua envergadura sendo super gentil, amoroso e atencioso com um simples doutorando nem sempre é comum de se ver, infelizmente. Essa humanidade que aparece em seus textos também apareceu no seu encontro comigo.
A perda de Moltmann é uma perda para a teologia contemporânea. Contudo, seu legado continua, e com certeza, sua obra ainda influenciará muitas pessoas, novos estudos serão feitos, novas teologias, tendo com base as de Moltmann já surgiram e, acredito eu, continuarão a surgir.
O teólogo da esperança, amante da vida, que em esperança aguardava a nova criação de todas as coisas descansou. Sua vida e teologia foram um exemplo para muitas pessoas, inclusive para mim. Foi um privilégio poder ter vivido no mesmo tempo que Moltmann.
Descanse em paz, querido Moltmann.