A santidade do cotidiano

A santidade do cotidiano

Photo by Oleg Sergeichik on Unsplash


Toda pessoa que se dispuser a ler os Evangelhos para conhecer quem foi Jesus de Nazaré encontrará naquelas páginas uma característica presente em todos os autores: Jesus era um homem do povo. Em outras palavras, Jesus se identificava com o povo das ruas por onde caminhava.

Essa marca característica de Jesus, por sua vez, nos diz muito. Se quisermos compreender o seu ministério, sua morte e ressurreição, assim como tudo o que os Evangelhos querem nos dizer a respeito da revelação de Deus, precisamos levar em conta esse dado. Afinal, de acordo com a fé cristã, é a partir de Jesus que Deus deve ser compreendido. Longe de ser uma entidade meramente metafísica, o Deus cristão se revela por excelência na pessoa de Jesus, de maneira que olhar para Jesus quer dizer olhar para o Pai, conhecer Jesus é conhecer o Pai e seguir a Jesus é cumprir a vontade do Pai. Que isso só seja possível por causa do Espírito, também os Evangelhos dão testemunho, mostrando que o Deus cristão é trinitário e deve ser compreendido dessa forma.

Voltando, então, para Jesus e seu modo de vida como homem do povo, é também característica sua ação em benefício dos desfavorecidos e pobres da terra. É entre eles que Jesus escolhe andar e esse ponto se mostra de extrema importância. Jesus, como atestam os Evangelhos, era reconhecido como rabi, ou seja, um mestre da Torá, alguém que era profundo conhecedor desses textos e, por isso, era capaz de ensiná-lo.

Os Evangelhos, por sua vez, deixam bem claro que o ensinamento de Jesus a respeito da Torá não se dava somente por meio do discurso, mas por meio dos seus atos em favor dos desfavorecidos de sua época mostrava que o ensinamento (melhor tradução para a palavra Torá, ao invés do que comumente se traduz como Lei) de Deus consistia na misericórdia sobressaindo ao juízo.

Aqui se mostra algo muito interessante. Jesus, como rabi, poderia ter se colocado como alguém superior aos outros, ter escolhido a casta rabínica farisaica que, como atesta Mateus, atavam fardos pesados sobre os ombros das pessoas, mas eles mesmos não estavam dispostos a levantar um dedo para a ajudá-los (Mateus 23,4). Como rabi, poderia também exigir ser saudado nas ruas, receber as honras que alguns recebiam e trazer sobre si uma aura de santidade por ser um dos que cumpriam de maneira legalista os preceitos da Torá.

Contudo, como os Evangelhos são enfáticos em pontuar, no lugar da santidade religiosa, Jesus deu preferência à santidade do cotidiano, aquela que se mostra no chão do mundo, voltada para aqueles e aquelas que necessitam e anseiam por contemplar o rosto de Deus, mas muitas vezes por causa dos legalismos e “pré-requisitos” impostos pelos religiosos se veem muito distantes do rosto amoroso e gracioso do Pai.

Por causa de tais “pré-requisitos” ainda hoje é comum que Deus seja visto como senhor barbudo e sisudo que está no céu anotando pecados e boas ações para no final de tudo fechar a conta de cada um e pagar a recompensa ou pedir a restituição pela vida que se teve na Terra. Em outras palavras, são impedidas de conhecer o Deus que se revela como Pai de Jesus Cristo, amoroso, gracioso, que faz sua chuva vir sobre justos e injustos e que ama incondicionalmente.

Jesus, como homem do povo, mostrou que Deus não está distante e não é inacessível, mostrou que Deus se mostra com um rosto humano, que se manifesta nas relações amorosas de uns para com os outros, porque Ele mesmo é amor (I João 4,8). Com isso em mente, é possível perceber que a santidade desejada por Deus não tem a ver com uma contemplação celeste, cercada de anjos, tudo branco e limpinho, mas em via totalmente oposta, tem a ver com o chão do mundo, os relacionamentos humanos, o cuidado com a natureza e com a vida comum.

Voltar a Jesus é, pois, optar pela santidade do cotidiano que se manifesta em todo ato amoroso e que visa o bem do próximo e da natureza. Essa santidade, por sua vez, é aquela que cumpre a vontade de Deus e revela que uma santidade baseada em legalismos e regras de “pode” e “não pode” está longe do que é desejado pelo Pai. Diante disso, não é difícil compreender por que foi a classe religiosa que entregou Jesus para ser crucificado.

A vida de Jesus foi e ainda é uma afronta a todo tipo de legalismo. Sem compreender isso, também não se compreende a profundidade de seu ensinamento e de sua vida, conforme narrada pelos Evangelhos.

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