A bibliolatria de vários evangélicos
Todo mundo que conhece um pouco a respeito da Reforma Protestante sabe o valor que é dado ao texto bíblico. O princípio da Sola Scriptura de Lutero, que afirma que as Escrituras têm a primazia sobre a Tradição no caso de conflito em relação à doutrina cristã foi, sem dúvida, uma das principais mudanças trazidas para o cristianismo por todo o movimento reformador.
A ênfase nas Escrituras, por sua vez, ao longo da história do Protestantismo foi criando a ideia de que a Tradição como todo deveria ser rejeitada, não importando em nada para a fé. Embora não tenha sido essa a proposta de Lutero, é muito comum percebermos hoje um grande desprezo que muitos cristãos, principalmente evangélicos, têm por esse tema, muitas vezes por considerarem erroneamente a Tradição como sinônimo de idolatria.
No entanto, algo que é curioso de se notar é que a ênfase no texto bíblico se transformou, para muitos evangélicos, a idolatria que tanto condenam no movimento católico. É muito comum observarmos uma bibliolatria no meio evangélico, principalmente entre aqueles e aquelas que usam versículos bíblicos como espécie de amuleto na esperança de que o texto bíblico aberto em alguma passagem (geralmente, o salmo 23 ou o salmo 91) irá prevenir que algum mal aconteça ao seu lar, ou ainda que um versículo pregado na traseira do carro evitará que este seja roubado ou tenha alguma avaria. Essa visão mística a respeito do texto bíblico, infelizmente, ainda é muito recorrente, o que revela uma incompreensão a respeito do que vem a ser tal texto.
Da mesma forma, é comum a pregação de sua literalidade, sem se atentar para o fato de que o próprio texto traz em si diversas incoerências e até mesmo posições contraditórias (basta, para isso, tomar os escritos da Lei e os Evangelhos para perceber que não poucas vezes Jesus agiu indo contra as pregações fundamentalistas dos fariseus que consideravam o texto mais importante do que os ensinamentos que nele se encontravam). Essa literalidade, por sua vez, tem como consequência a repetição daquilo que diversas religiões fundamentalistas de cunho textual fazem: assumirem-se como detentoras de um texto revelado e por isso mesmo responsáveis por converterem todas as pessoas que não pensam da mesma forma naquilo que seus textos sagrados afirmam. Com isso, tornam-se intolerantes e não raras vezes cruéis, seja em nível físico, seja em nível psicológico, para com as pessoas consideradas infiéis.
O Evangelho anunciado por Jesus, no entanto, segue na direção contrária a esse raciocínio e o próprio movimento inaugurado por ele não se entendeu como uma religião do livro, antes, como a religião da Palavra de Deus que se fez carne. Ou seja, o cristianismo, a religião que surge a partir da compreensão da mensagem de Jesus, jamais deveria angariar para si o desejo de ser uma religião do livro, mas, sim, afirmar-se por meio de seus atos como a religião da Palavra. Reconhecer a verdade como uma pessoa (Jo 14,6), assim, deveria fazer com que toda soberba e toda pretensão de conhecimento absoluto caísse por terra, visto que o caráter da pessoalidade é, justamente, sua impossibilidade de ser conhecida em sua inteireza, sendo essa também a característica do próprio Deus que é infinitamente maior do que aquilo que nossas definições sejam capazes de dizer sobre Ele.
Tratar o texto bíblico como amuleto, ou ainda, rejeitar a Tradição cristã está muito longe daquilo que Jesus anunciou e também da proposta da Reforma Protestante, quando anunciada por Lutero. Nesse sentido, recuperar a característica de ser uma religião da Palavra é fundamental caso a teologia cristã queira ser uma voz digna de ser ouvida na sociedade atual.
Longe dos rigorismos dos textos, a pessoa de Deus, que é amor, é reconhecida por meio dos atos concretos de amor ao próximo. Ser religião da Palavra é, portanto, afirmar a mensagem de Jesus, a Palavra, levando a boa nova de que Deus se importa com a humanidade e, em seu amor, deseja se relacionar novamente com ela.