Qual o problema se meu próximo morrer?
Imagem de S. Hermann & F. Richter por Pixabay
O livro do Gênesis em um dos seus primeiros relatos narra a relação entre Caim e Abel. Essa narrativa é largamente conhecida por muitas pessoas e diversos sermões foram feitos a respeito das ofertas oferecidas por um e por outro, da aceitação da parte de Deus da oferta de Abel e não da de Caim e daí por diante.
Algo importante a ser lembrado é de que o texto mostra o conselho dado por Deus a Caim para que ele estivesse atento, uma vez que o mal estava à sua porta e caberia a ele se deixar dominar por ele ou não (cf. Gn 6,7). A liberdade humana, a partir desse conselho divino, coloca-se como fator fundamental na relação da humanidade com o mal. Somente o ser humano pode decidir a respeito do mal que faz ao seu próximo e a si mesmo, trazendo sobre si a consequências de seus atos.
Diante do mal cometido, como nos mostra a narrativa, Caim ao ser questionado por Deus responde com a pergunta descarada em relação ao destino de seu irmão: “Acaso sou eu o guardião do meu irmão?” (Gn 4,9). À resposta sem vergonha de Caim segue a acusação e o julgamento divino sobre ele.
Em tempos de pandemia sob o qual estamos, nos quais se demanda um isolamento social para que a curva seja diminuída e o sistema de saúde não entre em colapso, vemos diariamente pessoas que reverberam a mesma pergunta de Caim frente à pergunta feita por Deus com relação ao seu irmão. Mesmo sabendo das recomendações de isolamento, acreditam que o mal não chegará a eles e, por isso, consideram que não há nada de errado em fazer somente uma saída para encontrar os amigos e familiares, ou para fazer um exercício ao ar livre. De alguma forma, é como se dissessem juntamente com Caim: “que tenho eu haver com meu irmão? Acaso sou guardião dele? Devo me importar com o que lhe acontece?”.
Ao contrário de Caim, que matou seu irmão por inveja, tais pessoas escolhem matar seus irmãos e semelhantes por puro egoísmo e satisfação de seus prazeres momentâneos, acreditando que suas demandas e necessidades de encontro, lazer etc são mais importantes e urgentes do que o bem-estar da sociedade em que vivem.
Escolhem não perceber que suas atitudes (a princípio super bem intencionadas) colocam em risco a vida das pessoas que amam, podendo até mesmo levá-las à morte. Neste sentido, como Caim, tornam-se responsáveis por sangue inocente, simplesmente por sucumbirem aos seus desejos e pseudonecessidades.
Sabemos que são tempos difíceis e que se manter longe das pessoas que amamos é algo complicado neste tempo. Contudo, é importante seguir as orientações de isolamento social para que menos pessoas sejam afetadas pelo vírus e, consequentemente, aquelas que o forem possam ser tratadas para que se recuperem mais facilmente.
O bem-estar social neste momento é mais importante que o bem-estar individual (algo difícil de ser assimilado por uma sociedade capitalista e egoica como a em que vivemos). Contudo, praticar isso neste momento pode ser a única forma capaz de salvar a todas as pessoas que amamos. Como mostra o texto, somente nós podemos escolher o mal ou o bem que fazemos. Deus não escolherá por nós e também não tirará as consequências dos atos que tomarmos.
Longe de querer causar medo em Caim, o conselho de Deus visava, como sempre, ao ajuste de sua rota para que trilhasse no caminho correto. Da mesma forma, a pregação de isolamento atual não é para pregar o alarmismo e o desespero, mas visa justamente salvar vidas e garantir que a sociedade possa se reerguer o quanto antes desse mal que nos assola.