A justiça de Deus: algo inaceitável para muitas pessoas

A justiça de Deus: algo inaceitável para muitas pessoas

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O tema da justiça já é discutido há muitos séculos. São conhecidos os grandes textos dos filósofos gregos que tratam sobre essa temática, bem como toda uma discussão trazida pelo próprio texto bíblico, seja no Antigo Testamento, seja no Novo Testamento.

Algo que se mostra característico nos textos do Antigo Testamento é a íntima ligação que havia entre a justiça e a misericórdia, de maneira que ambas deveriam ser pensadas juntas, jamais separadas. Ser justo, nesse sentido, como nos mostra Arminio Vaz em seu artigo[1], envolve uma ação concreta, direcionada ao próximo, visando o seu bem, o que claramente está para muito além de um mero cumprimento de preceitos legais.

Essa justiça, claramente, não é algo que somente se fala sobre, antes, algo que se pratica. Os Salmos, como nos mostra Armindo Vaz no mesmo artigo citado acima, “sobressai em toda Bíblia hebraica pela frequência com que relaciona a justiça com os pobres (139 vezes), além da ideia de ordem a justiça, contém geralmente um aspecto dinâmico: indica uma acção que se conforma à ordem estabelecida, seja dando ao outro o que lhe corresponde, seja restaurando-o na sua devida dignidade. Neste sentido, a justiça não estava já feita: era realizada por acção divina e por comportamento humano”.

Novamente, o que se ressalta não é uma justiça condenatória e que contabiliza erros e acertos, antes uma justiça que demanda mudanças sociais concretas, que visam o bem de todas as pessoas, principalmente dos pobres.

Quando passamos para o Novo Testamento, é muito conhecido o texto de Paulo que fala que “aquele que não cometeu pecado, Deus o fez pecado por nós para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5:21), o que por si só já deveria nos dar uma ideia de que o que Paulo coloca aqui vai na contramão da ideia de que a justiça se dá a partir da antiga lei de Talião (quem matou deve morrer, quem feriu deve ser ferido etc.).

Muito pelo contrário, em paralelo àquilo que o Antigo Testamento fala sobre a justiça (sempre importante nos lembrarmos de que Paulo é um judeu e, portanto, mesmo escrevendo em grego, muito possivelmente pensa com as categorias judaicas de sua criação), Deus, em Cristo, revela sua misericórdia salvadora, de maneira que a partir da morte e ressurreição de Cristo, tendo-nos encontrado com Ele, passamos a ser também agentes da misericórdia de Deus no mundo. Se em Cristo fomos feitos justiça de Deus e se a justiça pressupõe a misericórdia, a salvação e o bem ativo na direção do próximo, então somos convidados e convidadas a nos tornarmos pessoas que tenham esse tipo de atitude no mundo em que vivemos.

Hoje em dia é muito comum vermos pessoas que se dizem cristãs querendo projetar o conceito de justiça humana para Deus. Em outras palavras, acha-se um absurdo que pecadores e pecadoras sejam salvos pela graça, sem precisar “pagar” nada por isso. Querem, contudo que essas pessoas sofram, vejam o quão “estreito” é caminho que conduz à salvação, numa leitura totalmente fora daquela anunciada por Jesus.

Afinal, a justiça de Deus não é a justiça humana. A justiça divina, como compreendida no texto bíblico, é uma que salva, transforma, liberta, age com misericórdia, resgata da morte, restaura a dignidade, chama para o Reino de paz. Ou seja, é sempre uma justiça amorosa, não punitiva. Afinal, se afirmamos que Deus é amor, então não existe “Deus é amor, mas é justo”. Se compreendermos o que o texto bíblico afirma a respeito da justiça, então não deveríamos ter dificuldades em assumir que Deus é justo porque ama e ama porque é justo, estando os dois conceitos de amor e justiça intimamente conectados.

Mas dizer isso não implica desistir de requerer de Deus uma justiça como nós achamos que ela deve ser, o que para muitas pessoas que se dizem cristãs hoje pode ser um tremendo choque? Não se rompe, assim, com todo um ranking já criado de “justos” e “injustos”, “dignos” e “indignos” da salvação?

Ora, é isso mesmo.

Bem-vindo e bem-vinda à maravilhosa e chocante graça de Deus.

[1] Para o artigo completo: https://journals.openedition.org/cultura/1563

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