A radicalidade de uma teologia da graça
Photo by Chungkuk Bae on Unsplash
É muito comum a tara que nós humanos temos por certo tipo de pagamento em retribuição a alguma coisa feita por ou contra nós. Basta que nos lembremos de que quase sempre esperamos receber um agradecimento quando fazemos algo bom, ou sermos ressarcidos quando temos algum tipo de prejuízo. Em outras palavras, se fazemos o bem esperamos receber o bem em troca e se fazemos o mal esperamos receber algum tipo de castigo, ou punição pelo que fizemos.
Esse tipo de pensamento também se dirige às questões religiosas e ao relacionamento com Deus. Se observamos ao Antigo Testamento, por exemplo, para ficarmos somente na matriz judaico-cristã, podemos perceber esse fenômeno. A corrente majoritária presente no texto do Antigo Testamento é a chamada teologia retribucionista, que afirmava que Deus abençoa as pessoas boas e condena as más, de acordo com aquilo que fizeram.
Num primeiro momento, tal bênção ou maldição não levava muito em conta a intenção do coração. Basta lembrarmos do famoso caso de Uzá, narrado em 2 Samuel 6. Ali, de acordo com a narrativa, a intenção de Uzá era muito boa. Afinal, os bois, tendo tropeçado, fariam com que a arca da aliança caísse, o que ninguém, possivelmente, gostaria que ocorresse. Contudo, por melhor que fosse a intenção, Uzá desobedeceu a uma ordem de Javé, que considerando sua ação um ato de irreverência, matou-o ali mesmo, o que fez Davi sentir medo de Javé.
Com o desenvolvimento da história do povo, a relação com Deus e a forma de se relacionar com ele também mudam. O livro de Eclesiastes e o livro de Jó, por exemplo, são críticas ferrenhas à essa teologia retribucionista tão presente entre o povo de Israel e Judá. E isso pelo simples fato de se perceber que havia diversas pessoas boas que recebiam o mal e pessoas más que recebiam o bem, sendo, portanto, muito difícil sustentar que tal bênção ou maldição vinha da parte de Deus em resposta às ações dos seres humanos.
Com Jesus, e posteriormente com toda a sistematização feita pelas primeiras comunidades cristãs, tal teologia se torna ainda mais sem sentido. Primeiro, com toda a teologia da graça desenvolvida por Paulo, afirmando que Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores e, posteriormente, seguindo seus ensinamentos, o autor de Efésios, afirma categoricamente: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé. Isso não vem de vós, é dom de Deus” (Efésios 4:8), invalidando toda perspectiva que a salvação seria por meio das obras boas ou ruins que alguém fizesse. Em outras palavras, a salvação, sendo somente pela graça de Deus, independente das obras, o que claramente, não quer dizer que não se deva fazer boas obras. Antes, o que se afirma é que tais obras devem ser a consequência da graça recebida e não o meio para alcançá-la de alguma maneira. Esse tipo de leitura, por sua vez, será fortemente presente nos movimentos da Reforma Protestante, anos mais tarde.
Se com Paulo tal teologia retribucionista já se mostra sem fundamento, com a afirmação joanina de que Deus é amor, ou ainda a narrativa sinótica na qual Jesus afirma que Deus faz nascer o seu sol sobre justos e injustos, tal teologia retribucionista perde qualquer razão de ser dentro de uma perspectiva cristã.
No entanto, ainda hoje vemos diversos discursos retribucionistas no meio cristão. Talvez, porque nessa lógica é mais fácil de se explicar o mundo e as coisas boas e ruins que nos acontecem. Da mesma forma, tal teologia traz a famosa “certeza da salvação”, uma vez que qualquer pessoa pode afirmar: “eu faço o bem, eu sou uma pessoa honesta, correta etc. Então, claro que serei salvo por causa disso”.
Em outras palavras, a teologia retribucionista traz a sensação de que a justiça de Deus segue os padrões humanos e, consequentemente, traz segurança àqueles e àquelas que a seguem. A teologia da graça, por sua vez, mostra que nosso padrão de justiça está muito aquém daquela de um Deus que é amor, o que pode nos causar certo senso de injustiça. Afinal, como assim, a salvação é para todas as pessoas? Como assim não sou especial por ser bom? Como assim eu e esse assassino somos amados da mesma forma por Deus?
No entanto, por mais que tentemos, jamais seremos capazes de compreender tal amor de Deus. Se quisermos ser honestos com os ensinamentos de Jesus, foi isso que ele ensinou: que Deus é um pai/mãe amoroso/a, que vê seus filhos e filhas com o olhar da misericórdia, não fazendo distinção entre eles.
Curiosamente, o que deveria nos trazer alegria, uma vez que sabemos que a graça de Deus alcança a todos nossos irmãos e irmãs, em grande parcela que se diz cristã, traz indignação.
A pergunta que fica é: será, que no final das contas, o que queremos é que haja a condenação das outras pessoas para que nos sintamos especiais enquanto cristãos e cristas? Pensar nisso pode nos fazer rever a forma como fazemos teologia hoje.