Deus não é indiferente

Deus não é indiferente

Photo by Maria Teneva on Unsplash


Há algumas semanas, falamos sobre o primeiro sermão do padre Paneloux, na obra A Peste de Albert Camus. Neste texto, pretendo falar sobre o segundo sermão desse padre. Tal sermão é marcado pelo presenciar de Paneloux da morte de uma criança que foi acometida pela peste. Esse fato é o motivador da mudança de tom e perspectiva do padre jesuíta.

Em seu segundo sermão, alguns pontos se mostram bastante contrastante em relação ao anterior. Em primeiro lugar, o vós é substituído pelo nós. Essa simples mudança pronominal revela também uma mudança de atitude frente aos seus concidadãos. Ao dizer o nós, o padre se coloca também como alguém que é sofredor e responsável junto com sua comunidade. O trecho abaixo deixa isso claro:

Meus irmãos, é preciso sermos aquele que fica (…) Meus irmãos, disse por fim Paneloux, anunciando que ia terminar, o amor de Deus é um amor difícil. Ele supõe o abandono total de si mesmo e o desdém da sua pessoa. Mas só Ele pode apagar o sofrimento e a morte das crianças, só Ele, em todo o caso, pode torná-los necessários, pois é impossível compreendê-los, e não podemos senão desejá-los. Eis a difícil lição que queria compartilhar convosco. Eis a fé, cruel aos olhos dos homens, decisiva aos olhos de Deus, de que é preciso aproximarmo-nos. Perante esta imagem terrível, é preciso que nos igualemos. Neste cume, tudo se confundirá e se igualará, a verdade brotará da injustiça aparente (CAMUS, s/d, p. 246,248).

No segundo sermão é possível perceber a marca da caridade. Enquanto no primeiro havia a necessidade de explicação da peste e saber dizer sua causa e seus motivos, nesse, a postura é mais serena frente a ela. Paneloux tem claro que algumas coisas são inexplicáveis aos olhos de Deus, como a morte de uma criança. Nesse momento, questiona sobre a compensação eterna frente ao sofrimento momentâneo desse menino que sofre e morre. Chega a dizer que um cristão não diria um discurso assim para o menino que está a morrer, uma vez que o Mestre sofreu na carne e na alma a angústia e a dor humanas, sacrificando tudo no maior dos martírios de seu tempo.

Em certo momento de seu sermão, Paneloux interroga aos seus ouvintes: “Meus irmãos, a hora chegou. É necessário crer em tudo ou negar tudo. E quem, entre nós, ousaria negar tudo?” (CAMUS, s/d, p. 216).

Paneloux lança o grande desafio, que é também o desafio do evangelho, do salto de fé. Esse salto, que exige o lançar-se inteiramente, em total entrega em resposta à radicalidade do amor de Deus, mesmo sem compreender quais são seus planos. Esse aceitar tudo, porém não em simples fatalismo, porém como fatalismo ativo, implicaria ver qualquer indiferença como criminosa.

Agora, a conclamação é à responsabilidade pelo outro, como fruto do entregar-se totalmente a Deus, aceitando tudo em oposição ao negar tudo. No primeiro sermão, percebemos que a condenação vinha porque o Deus apresentado por Paneloux não aceitava ser ignorado e se sentia amado recebendo a visita de seu povo. Dessa forma, não aceitava a indiferença, antes essa era a causa de sua condenação por meio da peste, ou seja, havia a exigência da reciprocidade: porque eu amo, você não pode ser indiferente a esse amor. Se o for, não posso aceitar e não tenho outra escolha a não ser condená-lo a fim de que se arrependa.

No segundo, porém, é o lançar-se diante do inexplicável de Deus, do seu amor infinito, em ato de fé, que gera em nós a atitude de não ser indiferente, uma vez que Deus é sempre amor e nunca indiferente. 

Ao nos assemelhamos àquele a quem amamos, ficar e se importar se torna a escolha radical frente ao mal do mundo. É o ver de longe que nos fala Hebreus 11, contemplando com os olhos da fé, que nos faz “caminhar para frente, na sombra, um pouco às cegas, e tentar fazer o bem. Quanto ao resto, necessário esperar, entregando-nos a Deus, aceitar a morte das crianças, não buscar refúgio” (CAMUS, s/d, p. 216).

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