Um Deus que não aceita ser ignorado pode ser chamado de cristão?
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Albert Camus, ganhador do prêmio Nobel de 1957, continua sendo um dos maiores escritores de nosso tempo. Em uma de suas obras, intitulada A Peste, conta a história de uma cidade que foi atacada por uma peste e teve que conviver e lutar para salvar quantos podia, enquanto diversos morriam devido ao flagelo.
Dentre os vários personagens presentes na obra, Camus nos apresenta o padre Paneloux, jesuíta, bastante erudito e defensor de um exigente cristianismo. Sendo padre, durante a peste faz dois sermões para a comunidade. Nesse pequeno artigo[1], gostaria de falar sobre o primeiro sermão apresentado no romance. Nele, Paneloux fala de um Deus retribucionista, que traz o mal para a condenação dos pecadores e para arrependimento daqueles que haviam sido infiéis a Ele. A peste surge, então, segundo Paneloux, como esse castigo divino, a exemplo do castigo dado a Faraó no deserto quando o povo de Israel saía do Egito. Nesse sermão Paneloux fala da indiferença. Em sua voz: Sim, chegou a hora de refletir. Acreditastes que era bastante visitar Deus no domingo, esquecendo-se nos outros dias. Pensaste que algumas genuflexões compensariam a vossa criminosa indiferença. Mas Deus não é indiferente. Essas relações espaçadas não bastavam à sua insaciável ternura. Queria ver-nos muitas vezes: é a sua maneira de amar. E, na verdade, é a única maneira de amar. Eis por que, fatigado de esperar, mandou o flagelo a esta cidade, como a todos os lugares pecadores desde que o homem tem história (CAMUS, 1971, p. 125). Paneloux acusa o povo de indiferença em contraste com a perspectiva divina. Enquanto o povo era indiferente, Deus não se mostrava dessa forma.
O Deus apresentado por Paneloux nesse sermão é um deus que não aceita ser negado e ser ignorado. É um Deus que quer ser visto muitas vezes e, segundo o sermão de nosso padre, é se sentindo percebido que Deus reconhece o amor de seus fiéis. O não comparecimento, ou o comparecimento esparso por parte do povo à igreja revela a indiferença frente à vontade divina e o Deus desse sermão de Paneloux não pode se satisfazer com isso.
Interessante é para nós percebermos a relação que Paneloux estabelece entre o ser humano e Deus. Enquanto um é indiferente, o outro permanece sempre se importando e querendo a relação. O Deus de Paneloux é um deus que não pode ser dispensado pelo ser humano. Ele se torna um Deus necessário e sua necessidade se manifesta em condenar aquele e aquela que o esquece e o ignora.
Porém, o Deus que se manifesta no sermão de Paneloux seria o mesmo Deus revelado em Jesus Cristo? Talvez o ponto que se nos faz crucial é pensarmos que, no evento Jesus Cristo, a morte de Deus precisa ser também considerada, como nos mostra Moltmann, em sua obra O Deus Crucificado. A partir da história de Jesus Cristo, somos implicados a aceitar, como diz Joseph Moingt, que o Deus de Jesus aceita ser ignorado, rejeitado, negado, blasfemado e até morto, mostrando-nos que Deus se revela na fraqueza e na pequenez, permitindo ao ser humano a possibilidade de ignorá-lo e dando a este a liberdade para negá-lo.
Em outras palavras, o Deus anunciado por Paneloux não coincide com o Deus revelado em Jesus Cristo. Enquanto aquele não aceita a indiferença, o Deus que se revela em Jesus se mostra como total doador e como aquele que escolhe morrer, dando ao ser humano a total liberdade de negá-lo e ignorá-lo, caso o queira.
O Deus anunciado por Jesus Cristo é amoroso, e como todo aquele que ama, revela-se na gratuidade. Sendo, portanto, um Deus que se dá gratuitamente, permite-se também, em sua radicalidade amorosa, ser rejeitado.
Que isso seja difícil de se compreender para aqueles e aquelas que desejam um Deus vingativo e irado não temos dúvida. Contudo, é esse aquele a quem Jesus nos convida a chamarmos de pai e sermos como Ele.
[1] Baseado no artigo: Considerações sobre a indiferença a partir da obra A Peste de Albert Camus. Pensar-Revista Eletrônica da FAJE v.9 n.1 (2018)