Sentir-se amado pelos outros e por Deus: dificuldades nos protestantismos
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Que a teologia cristã protestante, em sua grande maioria, tenha uma visão bastante pessimista a respeito do ser humano não é de se espantar. Afinal, Lutero, como agostiniano que era, em se tratando de sua antropologia, conseguiu ser mais radical que o próprio Agostinho.
Se por um lado Agostinho considerava o ser humano como carente da graça de Deus para que pudesse fazer o bem, por outro, não excluiu dele a capacidade do livre arbítrio. A questão fundamental para Agostinho na querela entre predestinação e livre arbítrio residia no fato que o ser humano, ao pecar, perdeu sua liberdade (capacidade de escolher o bem), mantendo, contudo, o seu livre arbítrio (capacidade de escolha). Assim, somente com o auxílio da graça de Deus que seria possível que o ser humano escolhesse o bem. Sem ela, o ser humano sempre escolheria o mal.
Quando Lutero, por sua vez, pensa sua antropologia, vai além de Agostinho, chegando até mesmo a excluir o livre arbítrio. É célebre sua resposta a Erasmo de Roterdã que afirma que o ser humano é como um jumento que é direcionado por quem o monta. Se é Deus quem o monta, então ele é direcionado para o bem, se é o diabo, então ele é direcionado para o mal.
Essa visão pessimista, claramente, não reflete todos os ramos do protestantismo que se seguiu a partir da Reforma. O próprio Metodismo não segue essa linha, dando ênfase à questão do livre arbítrio e da liberdade humana. Contudo, algo que é interessante de se perceber é o quanto tal visão pessimista do ser humano ainda se faz presente em muitas correntes, principalmente evangélicas.
Quem já frequentou alguma denominação evangélica provavelmente já ouviu hinos que reforçam essa ideia da miserabilidade humana, tais como: “se tu olhares, Senhor, para dentro de mim nada encontrarás de bom”, dentre outros que poderiam ser citados. Algo que parece simplesmente um sentimento de humildade e reconhecimento da grandeza de Deus, no final pode se transformar em uma dificuldade enorme de se reconhecer como amado por Deus e pelos outros. Em outras palavras, tais cristãos/ãs correm o risco de transferir essa relação que se estabelece com Deus para as relações com as outras pessoas, de maneira que não se sintam dignas do amor do outro e, portanto, desenvolvem uma dificuldade enorme de aceitar o amor que as outras pessoas têm a lhes dar, justamente porque também têm uma grande dificuldade de aceitar o amor gratuito de Deus.
Aqui, a meu ver, encontra-se o ponto fulcral. Ao invés de se proclamar um Deus que é Pai/Mãe amoroso/a, são diversas igrejas que proclamam uma das imagens de Deus apresentadas no Antigo Testamento, de que Deus seria Aquele criador de todas as coisas, distante nos céus, cujas ações humanas são consideradas como trapos de imundícias diante de um Deus que é plenamente Santo. Deixa-se a ênfase no amor do Pai/Mãe que acolhe e deseja seus filhos e filhas para se focar no Senhor que só é bondoso em resposta a algum ato de reconhecimento de nossa pequenez.
Claramente, o problema não está em afirmar a grandeza, a santidade e o caráter criador de Deus diante de nossa pequenez. O problema está em colocar isso como mais importante do que aquilo que, para nós cristãos, é o cerne do ser de Deus, que é o amor. Deus é grande e santo porque é amor, da mesma forma que cria porque é amor, liberta porque é amor e assim se segue com todos os outros atributos divinos. Em suma, todos esses atributos só podem ser entendidos na perspectiva cristã quando vistos na perspectiva do amor.
Dessa forma, afirmar que Deus não encontra em nós nada de bom, sendo que fomos criados/as por Ele não faz muito sentido, a partir do que nos mostram os Evangelhos. Somos amados e amadas por Deus e, por esse motivo, somos também capazes de amar uns aos outros e somos capazes de sermos amados e amadas pelas outras pessoas.
Reconhecer que somos pessoas dignas do amor do outro é libertador e, sem dúvida, mais um passo a ser dado para que possamos manifestar cada vez mais o amor de Deus ao mundo.