O risco do racismo religioso

O risco do racismo religioso

Photo by Tiago Celestino on Unsplash


No dia 07/08/2020, o site do UOL deu a notícia de que uma mãe, moradora da cidade de Araçatuba, em São Paulo, havia perdido a guarda da filha de 12 anos depois que esta participou de um ritual de passagem feito no Candomblé. Em um dos momentos da reportagem se afirma que “ainda que não tenham surgido novos indícios de violência ou abuso, familiares que não concordam com a religião fizeram outra denúncia”. Tal denúncia resultou na perda da guarda da filha por parte da mãe da menina, que agora vive com a avó que é evangélica e que foi uma das denunciantes a respeito de maus-tratos e abusos sexuais aos quais a menina estaria sendo submetida, denúncia esta que não foi comprovada mediante o exame de corpo de delito no IML.

Essa situação, bastante triste por sinal, parece revelar algo ainda mais preocupante e sobre o qual já falamos anteriormente em nossos textos. Trata-se da intolerância religiosa, que no caso parece se manifestar como preconceito religioso, discriminação religiosa, e não dificilmente, racismo religioso por parte de todas as pessoas envolvidas, até mesmo do próprio Estado.

Não é de se espantar que uma das denunciantes seja evangélica. Mesmo que seja amplo o que é denominado evangélico no país, infelizmente dentro desse movimento há diversos grupos fundamentalistas e que se consideram como pertencentes à única religião verdadeira, sendo todas as outras consideradas obras de Satanás. Mesmo que tal postura não ocorra somente no movimento evangélico, havendo também representantes desses fundamentalismos na igreja católica, é notória a guerra que o movimento evangélico estabeleceu (principalmente com o advento do neopentecostalismo) com as religiões de matrizes africanas.

Comumente demonizadas, tais religiões são vistas por tais movimentos evangélicos fundamentalistas como crenças inferiores, praticadas por pessoas que estariam enganadas pelo diabo e afastadas de Deus. De certa maneira, o próprio fato de se atribuir a tais religiões o nome de crença já denota certo olhar desdenhoso que grande parcela cristã ainda insiste em fomentar com relação às religiões de matrizes africanas.

A pretensão de se acharem do lado certo, de se considerarem os únicos detentores do amor de Deus, os que possuem o passaporte privilegiado da salvação não raras vezes nos faz ver atitudes como essa que mostra a reportagem.

Se olharmos mais fundo ainda, é possível também perceber o velho racismo que se encontra nas entranhas da nossa sociedade, que considera tudo que é ligado à raça negra como algo sujo, demoníaco e inferior, esquecendo-se de que somos, na verdade, filhos e filhas de negros e negras. O próprio cristianismo, nascido na Palestina não veio da branquitude europeia; Jesus e seus discípulos, provavelmente, tinham mais traços negros comuns na região da Palestina do século I, do que traços cáucasos; a própria teologia cristã, em seus primórdios, não foi sistematizada por brancos de olhos azuis, mas por teólogos que provavelmente eram negros, visto vários terem vindo do norte da África, tal como Agostinho para citarmos um dos mais famosos.

Diante dessa realidade de origem, pensar um cristianismo que seja racista, ainda mais no nosso país que é uma mistura sem fim de raças, torna-se um absurdo, sendo vergonhoso seu fomento em diversas comunidades que se dizem cristãs espalhadas Brasil a fora. A ideia de superioridade cristã com relação às religiões de matrizes africanas não pode ser vista sem levar em conta o racismo estrutural da qual tal ideia participa, sendo, portanto, tarefa teológica denunciar todo e qualquer ato de discriminação e preconceito religioso, como o que aparenta ser tal fato noticiado pelo UOL. Qualquer pessoa que se considera superior ou melhor que outra por pertencer ao cristianismo ainda não entendeu o evangelho anunciado por Jesus.

Religiões de matrizes africanas não são religiões diabólicas. Dizer isso é preconceituoso e revela uma ignorância sem tamanho. Muito pelo contrário, é uma religião como tantas outras, tal como o é o próprio cristianismo com seus rituais, suas preces e sua tentativa de dizer a relação entre humano e divino. Somente quando uma pessoa que se diz cristã compreende que ela não é melhor ou está mais próxima de Deus por causa da religião que professa é que ela começou a também compreender o Evangelho de Jesus que anuncia o amor abrangente do Pai que chama a todas as pessoas para participar de sua vida.

Diante de tudo isso, a denúncia do racismo em todas as suas formas é também tarefa cristã.

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