O perigo do discurso teológico
Imagem de Kai Trulsen por Pixabay
O discurso teológico sempre foi algo perigoso. A própria história nos mostra o quanto ele foi usado para justificar genocídios, escravidões, injustiças, regimes ditatoriais, dentre tantas outras mazelas que poderíamos citar e que tiveram por base uma teologia que as justificassem.
Não que isso seja algo novo. Sabemos que não o é, bastando para isso observarmos os textos bíblicos para percebermos que ali já havia esse uso do discurso a respeito de Deus para oprimir o povo, como faziam os fariseus hipócritas do tempo de Jesus, ou ainda os antigos reis de Israel e Judá, sobre os quais o Antigo Testamento narram.
O motivo desse uso instrumental do discurso teológico também já é bastante conhecido entre aqueles e aquelas que se debruçam a estudar as influências das religiões na sociedade, independentemente se no norte o sul global, uma vez que é característica marcante que líderes religiosos e políticos atribuam para si alguma espécie de poder divino, ou ainda, um chamado de Deus para comandar determinado grupo de pessoas na sociedade, influenciando, portanto, o modo de viver dela.
No caso cristão, talvez, esse uso se torna mais marcante ainda, visto que a própria Igreja o utilizou muito para delimitar seu poderio sobre as nações (lembremos que na Idade Média, durante um bom tempo, eram os papas quem consagravam os reis, por entenderem que o poder celestial representado por eles, estava acima do poder terreno concedido ao monarca). Com o passar do tempo, mesmo com toda revolução científica e a criação de um mundo pós-cristão, essa característica ainda permanece em muitos meios, principalmente em comunidades mais simples, cuja relação com Deus, não dificilmente, é considerada válida somente se intermediada por algum tipo de sacerdote ou sacerdotisa.
Mais especificamente no caso cristão evangélico de matriz pentecostal e neopentecostal esse uso instrumental da teologia se mostra em níveis estarrecedores. Prova disso é a quantidade de microigrejas que são abertas e fechadas diariamente no país sob o discurso de que “Deus me mandou abrir essa comunidade”, ou ainda “Deus me chamou para fazer isso”. Como “Deus disse” encerra qualquer argumentação, uma vez que quem está convencido de ter ouvido a voz de Deus dificilmente será convencido de que não o foi, as microigrejas muito provavelmente continuarão a ser abertas.
Uma vez que tais microigrejas são comandadas somente por aqueles ou aquelas que receberam o chamado, as pessoas que frequentam tal comunidade pressupõem que tal chamado é verdadeiro, passando a ver determinado líder como tendo maior contato com Deus e maior conhecimento de qual seria a vontade divina a ser praticada no dia a dia. Juntam-se a isso uma falta de conhecimento do texto bíblico e uma religiosidade constantemente marcada pelo medo do castigo divino e temos um prato cheio tanto para um charlatanismo religioso, sobre o qual falamos há alguns textos, quanto para o fomento de discursos fundamentalistas, baseados em uma leitura literal do texto bíblico e teologias conservadoras, tais como as propagadas pelo novo calvinismo de origem norte-americana.
Esse fundamentalismo religioso não dificilmente se transforma em fundamentalismo político que acredita que as estruturas democráticas da nação devem estar debaixo de um poder religioso que se considera comandado por Deus, o que, ao longo de toda história, mostrou-se como a pior coisa que pode acontecer a um determinado Estado.
Diante desse cenário, teólogos e teólogas possuem um papel importantíssimo de denúncia profética dessas artimanhas, bem como de ensino compreensível daquilo que o texto bíblico quer transmitir a partir de Jesus Cristo. Sem uma teologia comprometida com o Reino de Deus, que saia da academia e se volte para o povo, a fim de fazer-se compreender por pessoas simples, tende-se a ver cada vez mais o crescimento dos fundamentalismos religiosos cristãos e a deterioração do Estado Democrático de Direito.