Graça e meritocracia: não se pode servir a dois senhores
Talvez um dos fundamentos da fé cristã mais falado e mais bem quisto no meio cristão seja o da graça. É muito comum ouvirmos pessoas falando sobre ela, mencionando o amor de Deus que traz a sua salvação a todos e todas que a desejarem, ou ainda citar os diversos versículos do Novo Testamento que falam a respeito disso, principalmente o de Romanos ou as parábolas de Jesus.
No entanto, ainda que a palavra esteja na boca de muitas pessoas, geralmente, o que se vê é que o olhar de graça para com os diferentes ainda continua muito longe do coração daquelas que falam constantemente sobre a temática. Isso, porque agir com uma atitude de graça é muito mais oneroso do que falar sobre ela. A sabedoria popular sintetizou essa verdade no famoso ditado “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Ou seja, dizer sobre uma coisa é muito mais fácil do que se empenhar com ela.
Quando se trata de um conceito teológico, então, mais difícil ainda. Isso porque, para se viver a graça de Deus, sendo instrumento para levá-la às outras pessoas, demanda em um primeiro momento uma atitude de humildade, de reconhecer que a graça da qual quero ser porta-voz coloca todos e todas no mesmo bojo, de maneira que não há nenhum privilégio, ou meritocracia quando se trata da graça. Todos e todas são iguais, imprescindivelmente carentes dela e da misericórdia de Deus.
Embora falar isso seja tranquilo para muitas pessoas que se dizem cristãs, é comum percebermos nesse meio o olhar de superioridade com relação às outras religiões ou em relação às outras classes sociais. Quantas pessoas que se dizem cristãs não se consideram melhores que as outras por terem melhor condição financeira? Ou se acham mais inteligentes e capacitadas do que as pessoas que nasceram nas favelas ou nos cantos do mundo? Da mesma forma, quantas pessoas que se dizem cristãs não se acham mais merecedoras da graça e da salvação porque fazem caridade aos pobres, embora não se questionem a respeito da desigualdade social e estrutural que leva à pobreza?
Não dificilmente é possível ver atos de misericórdia não virtuosos, que são feitos por diversas pessoas somente como maneira de se mostrarem superioras àquelas que não têm nada e, assim, sentirem-se melhores, mais merecedoras da salvação ou dos favores divinos. Nesse sentido, quando isso acontece, está claro que esse ato de misericórdia não tem nada de virtuoso, sendo somente a manifestação de um vício.
Reconhecer a graça de Deus e ser um agente dela demanda essa humildade da qual falamos mais acima. Algo sobre a qual Jesus, Paulo, João, dentre tantos outros e outras na história do cristianismo falaram, mas que o sistema mundano insistiu sempre em desvirtuar, seja por meio das querelas acerca de quem seria o maior no Reino dos Céus dos discípulos, seja na discussão acerca “dos de Paulo” e “dos de Pedro” da igreja primitiva, seja hoje num sistema capitalista e neoliberal que acredita que tudo deva ser regido pela lógica da meritocracia, que constantemente afirma que certas pessoas estão no lugar que estão porque não fazem o suficiente para chegarem mais alto, ou ainda, que preferem contar com a ajuda dos outros porque são preguiçosas demais e não gostam de trabalhar.
A meritocracia nunca esteve presente nas falas de Jesus. Este sempre afirmou que o Pai ama a todos e todas da mesma forma, faz vir a chuva sobre bons e maus, exige que amemos a todas as pessoas independentemente de quem sejam. Mostra, na cruz, que a verdadeira graça é aquela que se entrega sem esperar nada em troca, de maneira que toda meritocracia é jogada no buraco.
Afirmar um cristianismo meritocrata é se afastar da proposta de Cristo. É não compreender a graça de Deus que exige que se lute por igualdade social, para que os pobres tenham cada vez mais oportunidades, e os mesmos direitos e privilégios que são concedidos às castas mais abastadas da sociedade até que não haja mais diferença entre pobres e ricos.
Seguir o caminho de Jesus Cristo implica o combate à injustiça, o questionamento acerca da desigualdade social estrutural de nossa sociedade e a luta para que o abismo que separa pobres e ricos seja diminuído.
Se falar sobre a graça de Deus não levar a essa atitude, então, talvez, tal pessoa que a afirma nunca compreendeu o real sentido do que é a graça.