Porque pela graça sois salvos
Esse versículo, embora muito conhecido no meio cristão, constantemente, nos discursos diários a respeito da fé, é colocado de lado, ou até mesmo esquecido. É muito comum ao Cristianismo se considerar a melhor religião de todas, por se entender como a única que alcançou a verdade última e suprema a respeito das coisas. Como consequência, não é difícil percebermos diversos cristãos e cristãs se exaltarem a respeito do bem que fazem, e alguns, até mesmo, buscarem fazer o bem para que possam ser dignos de determinada salvação, como numa espécie de semeadura de boas obras para se colher, lá na frente essa recompensa.
Contudo, entender que “pela graça sois salvos, isso não vem de vós, é dom de Deus” (Ef. 2,8) implica, necessariamente, abrir mão de toda pretensão de poder, por meio de quaisquer obras, alcançar a salvação. Esse versículo nos aponta que não há nada que possamos fazer para que Deus nos ame mais, ou nos ame menos e, como consequência, toda ação que é feita no intuito de alcançar a salvação de nossa alma, torna-se sem sentido.
Paulo, em sua carta aos Romanos, nos alerta de que se recebemos o salário de nosso trabalho isso não é graça, antes, um direito que temos por termos trabalhado (Rm 4,4). Se nossas obras podem nos salvar, então a graça deixa de ser graça e passa a ser mera recompensa por todo o esforço dispensado em viver de acordo com uma moral pré-estabelecida.
A fé cristã, contudo, não pensa dessa forma. Muito pelo contrário, afirma que a salvação é pela graça e de graça, ou seja, vem como um favor não merecido da parte do Pai que nos ama e quer se relacionar conosco. Isso, contudo, não quer dizer que as obras são desnecessárias, mas o que se inverte nessa perspectiva é qual a motivação pela qual determinada obra é ou não é feita.
Dessa forma, em perspectiva cristã, não se faz obras para ser salvo, mas se faz obras por ser salvo. É por ter sido alcançado/a pelo amor de Deus que se torna possível amar ao próximo; é por ter sido justificado/a que é possível lutar para que a justiça divina seja efetivada na concretude do mundo; é por se crer na nova criação de todas as coisas que é possível trabalhar para que o mundo seja um lugar melhor de se viver, e assim por diante, em todas as questões relacionadas à fé cristã. Amamos porque ele nos amou primeiro, nos diz a primeira carta de João.
Claramente, a ordem posta pela fé cristã é oposta àquela da semeadura e colheita no que tange a questão da salvação, o que não quer dizer que essa fé pregue que não há consequência para aquilo que se faz na vida diária. Aquilo para o qual a fé cristã chama a atenção é a gratuidade com que esse amor se apresenta a nós, de maneira que nos convida à humildade de nos reconhecermos pecadores/as como qualquer outro/a, independente de quão bons/as e comprometidos/as nos julgamos ser.
Assim, toda pretensão de superioridade que se mantém em relação àqueles e àquelas que não pensam ou agem da mesma forma que nós deve ser vista como algo que não compete à fé cristã. Sob o amor de Deus não faz diferença o que se é e o que se faz, porque todos são amados da mesma maneira por ele e são por ele chamados novamente à reconciliação.
Assumir que somos salvos/as pela graça nos coloca diante da verdade de que em nada nos diferimos daqueles e daquelas que consideramos os/as piores da face da Terra, mas, como eles/as, somos carentes e necessitados/as do mesmo amor. Essa consciência trazida pela fé cristã deve fazer-nos reconhecer no outro um semelhante a nós e, assim, lutar para que o amor com o que fomos alcançados/as alcance também a esses.