Um Cristianismo desencarnado
Dentre os grandes temas que perpassam a história cristã, a Encarnação, sem sombra de dúvidas, é um dos maiores e também um dos responsáveis por diversas discussões no início do Cristianismo. Afinal, Deus se tornar humano era algo que estava longe da compreensão judaica a respeito de Javé, ao mesmo tempo que pensar em um Deus que morre estava longe da compreensão grega.
Devido a isso, diversos foram os embates teológicos a respeito da questão: desde aqueles que, no medo de abrir mão da divindade de Deus, fizeram de Jesus Cristo o “maior” e “melhor” das criaturas de Dele, tal como Ário, até aqueles que, como Atanásio, no intuito de manter a doutrina cristã da salvação, afirmavam que somente o que havia sido assumido poderia ser salvo, o que em outras palavras queria dizer que para que Deus pudesse salvar a humanidade, Ele precisaria assumir essa humanidade, o que foi feito por meio de Jesus Cristo.
O Concílio de Nicéia, acontecido em 325, põe fim, pelo menos de maneira doutrinal, à disputa entre os seguidores de Ário e os de Atanásio ao afirmar que Jesus e Deus possuem a mesma substância e que, por isso, Jesus é Deus de Deus, Luz de luz, gerado e não criado. Essas disputas, no entanto, permaneceram por muito tempo após o Concílio e, não dificilmente, é possível encontrar seguidores das teses de Ário em dias atuais.
Com a questão doutrinal resolvida, aparentemente, o Cristianismo se esqueceu do cerne da doutrina da encarnação. Uma vez que a doutrina já estava pronta, não parecia mais haver a necessidade de se pensar mais sobre o assunto. As diversas perseguições ocorridas tanto após o Concílio de Niceia contra os seguidores de Ário, bem como as que ocorreram às outras religiões e modos de pensar durante o período da Idade Média, mostram que o que direcionava essas ações não era o ensinamento trazido pela encarnação, mas antes, a letra da doutrina sobre ela.
Assim, as definições conceituais que eram extremamente necessárias no tempo de Niceia, e que tinham a ver com a afirmação correta daquilo que se cria frente a uma chuva de ideias diferentes a respeito da fé cristã, devendo, portanto, ser critérios confessionais, transformaram-se, assim como tantas outras doutrinas, em palavras de julgamento e condenação frente aos que pensavam de forma diferente do Cristianismo.
Nisso está o perigo de se colocar a doutrina acima da Palavra viva. Compreender a Encarnação como somente algo metafísico que aconteceu uma vez na história é não compreender o real sentido que esse mistério quer passar. Ao fazer isso, o Cristianismo trata como exterior aquilo sobre o qual deveria cada vez mais assumir como algo que lhe é interior.
Devido a isso, não é difícil ver, em muitas igrejas, um Cristianismo desencarnado, meramente espiritual e doutrinal que se preocupa somente com a realização de seus cultos, missas e sacramentos para a salvação interior dos que chegam a ela, sendo essas mesmas igrejas as pregam a intolerância religiosa, a discriminação e o preconceito, justificando tais práticas dentro de uma leitura também desencarnada do texto bíblico.
Encarnar quer dizer “assumir a carne” ou “humanizar-se”. Nesse sentido, no mistério da Encarnação está posto o modo de ser que deve nortear a todo aquele e aquela que se diz seguidor de Jesus Cristo, isto é, ser aquele que se humaniza a cada dia diante de um mundo cada vez mais desumanizado, ser aquele que se importa com os outros em um mundo que se torna cada vez mais egoísta, ser aquele que se dá aos outros em um mundo em que, cada vez mais, as pessoas querem as coisas somente para si, ser aquele que sofre com o sofrimento do outro em um mundo em que, cada vez mais pessoas estão alheias aos sofrimentos e lutas dos desfavorecidos, dentre tantos outros exemplos que se poderiam colocar nessa lista.
Mais do que saber e pregar sobre a Encarnação, o Cristianismo é chamado a viver essa encarnação em seu fazer diário, principalmente na luta em favor dos mais fracos e desprotegidos. Somente assim será possível para ele se mostrar como uma voz que faça diferença em uma sociedade tão polifônica como a que se vive atualmente.