Um Cristianismo de duas caras
A relação com a liberdade ao longo da história cristã não é algo tão simples, mas traz, desde os primeiros cristãos, diversos problemas. Partindo do relato evangélico a respeito da liberdade que os discípulos tinham para colher espigas em dia de sábado, até a controvérsia entre cristãos e judeus no século I que motiva Paulo a escrever aos Gálatas dizendo que “foi para a liberdade que Cristo vos libertou” (Gl 5,1) e, ao mesmo tempo, “não useis da liberdade para dar ocasião à carne” (Gl 5,13), o drama entre liberdade e controle se faz presente no Cristianismo e perdura até os dias atuais.
É comum pensar que há dois lados bem definidos nessa trama. De um lado estariam aqueles que, ancorados em uma legislação existente, acreditariam ter as regras claras exigidas por Deus e, assim, são autorizados a exigirem que essas sejam seguidas por todos aqueles que queiram se relacionar com esse Deus e desejam ser salvos por Ele. Do outro lado os que, ancorados em uma leitura cristã do texto bíblico, perceberiam que as condutas corretas não são exigências para a salvação, antes, consequências de uma vida transformada por Deus que deve ser vivida em liberdade e amor.
Contudo, ao atentarmos para o Cristianismo de nossos dias, não é difícil perceber que são vários os cristãos que fazem um mixentre esses dois lados de acordo com sua própria conveniência. Dessa forma, liberdade e controle se tornam meros óculos que são escolhidos em determinados momentos para se ver as situações do cotidiano.
Por causa disso, não é de se espantar que, no Cristianismo brasileiro atual, da mesma boca que sai a frase “Cristo liberta os oprimidos e transforma a vida do pecador” nos momentos de evangelismos, saia também o dito que “bandido bom é bandido morto” quando se vê alguma notícia de assaltos ou homicídios nos meios de comunicação. Para o momento de evangelismo, os óculos usados são aqueles do amor e da misericórdia revelados em Jesus Cristo que chama à liberdade. Por sua vez, para a onda de violência que assola diversas regiões do Brasil, os óculos colocados são os da legislação implacável do Antigo Testamento. Dessa forma, esse Cristianismo se mostra como tendo duas caras, ou seja, promulgador de liberdade em alguns casos e condenador em tantos outros. Assim, cabe a nós perguntar: “quem confiará em um discurso que parta de alguém que tenha uma atitude de duas caras?”
O medo da libertinagem, em muitos casos, levou o Cristianismo a se transformar em um agente de controle das condutas alheias. Mas, ao fazer isso, foge totalmente da proposta trazida por Jesus Cristo por meio do Espírito que é a de “evangelizar os pobres, proclamar libertação aos cativos, recuperar a vista aos cegos e enviar os oprimidos em liberdade para proclamar o ano aceitável do Senhor” (Lc 4,18-19).
Embora seja extremamente tentador exercer o poder e o controle sobre a vida das pessoas, é imprescindível que o Cristianismo atual perceba que não é essa a sua função na sociedade. Muito pelo contrário, sua função é ser agente da liberdade e do amor de Deus para os que estão oprimidos e presos nas diversas prisões de sua existência.
Assim, lutar pela justiça em favor dos oprimidos, assumir a causa do pobre como sua própria causa, lutar em favor da vida daqueles que são mortos diariamente por causa do preconceito, do legalismo e do moralismo é o que fará com que o Cristianismo seja reconhecido como representante do Evangelho de Jesus Cristo. Em outras palavras, somente ao agir ancorado no amor incondicional de Deus, tomando sempre o lado do mais fraco como o seu próprio lado é que o Cristianismo se mostrará, não mais como “duas caras”, mas sim com o rosto desejado por Deus, ou seja, o rosto do amor que incentiva a liberdade.