Lutero e gestos que ainda ressoam: diálogo, denúncia e mudança
Em 31 de outubro, há 500 anos, Lutero pregava as 95 teses na capela de Wittemberg, na Alemanha, a fim de discutir com os teólogos de seu tempo a respeito daquilo que ele considerava errado na forma como a Igreja lidava. Esse simples gesto é considerado o marco da Reforma Protestante que deu origem a uma nova forma de organização da Igreja no Ocidente e que, a partir daí, se expandiu por todo o mundo, alcançando todos os continentes e se ramificando em diversos seguimentos, muitas vezes, totalmente divergentes da proposta original.
O gesto de Lutero, embora feito haja muito tempo, ainda se mostra como exemplo para cristãos hoje, sendo seu simbolismo de extrema importância e ensinamento. Diante disso, três atitudes podem ser percebidas nesse gesto e se mostram dignos de nota ao se refletir a respeito desse evento.
Em primeiro lugar, encontra-se o convite que é feito por Lutero a todos de Wittemberg para debater, sob sua presidência, sobre o valor das indulgências, o que fica claro quando, em seu texto diz que “Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittemberg (…)”, solicitando, da mesma forma que “ (…) os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes”. Nesse gesto se pode perceber a abertura para o diálogo que está no cerne do pensamento de Lutero e que deveria, então, ser a tônica fixa do movimento Protestante desde então. Infelizmente, se percebe hoje, principalmente no movimento evangélico e católico de cunho fundamentalista, a dificuldade de se abrir para o diálogo frente às questões emergentes do tempo atual. Antes, fincados em uma leitura literal do texto bíblico, da qual Lutero e o Catolicismo também não partilham, voltam-se para si mesmo e lutam contra tudo o que foge à leitura descontextualizada que fazem do texto bíblico.
Em segundo, nesse gesto se encontra a atitude proféticaque, desde os tempos do Antigo Testamento, mostra-se como instrumento de Deus para denúncia dos males que assolam os mais pobres. Lutero, ao denunciar aqueles que, mediante o pagamento de indulgências, prometiam a saída das almas do purgatório para o céu (tese 27), bem como os que queriam fazer grandes construções para a igreja usando o dinheiro dos pobres fieis (tese 86), manifesta aquilo que se espera de todo aquele que se diz servo do Deus cristão, que é a denúncia e luta contra as injustiças que visam espoliar os bens dos pobres e que, por meio de ensinamentos errados, fazem com que seus bens sirvam para enriquecer àqueles que são detentores do poder, seja ele financeiro ou institucional.
Ao se observar o movimento neo-pentecostal e a teologia da prosperidade que pregam, percebe-se que a denúncia feita por Lutero ainda se faz necessária, sendo tarefa cristã combater esse tipo de ensinamento por meio da denúncia de que esse tipo de barganha está em total desacordo com a proposta da graça que é distribuída a todas e todos indiscriminadamente e sem exigir nada em troca para isso.
Por último, e não menos importante, a atitude de questionamento que se encontra no Reformador deve ser frisada. Ao longo das 95 teses pregadas em Wittemberg, encontram-se diversos questionamentos feitos por Lutero aos ensinamentos que eram divulgados pela Igreja e que estavam em desacordo com as Escrituras. Esses questionamentos, que também complementam a atitude de denúncia, levaram Lutero a ser perseguido e, posteriormente, excomungado pelos líderes religiosos de seu tempo.
Em um momento em que se crescem as mega igrejas e movimentos que, dizendo-se cristãos, levantam-se contra os mais pobres e roubam seus direitos e bens, o exemplo de Lutero convida a todos os cristãos a serem, ancorados nas Escrituras, questionadores das atitudes e ensinamentos institucionais, a fim de que o verdadeiro Evangelho que liberta e traz refrigério aos excluídos e marginalizados da sociedade, seja pregado e vivido, ainda que para isso seja necessário bater de frente contra as estruturas hierarquizadas dessas instituições.
Lutero, como fruto de sua experiência com a Palavra de Deus, foi um divisor de águas no Cristianismo e exemplo da transformação que uma fé genuína pode fazer na força do Espírito, ainda que para isso tivesse que ser considerado como um herege para a liderança religiosa de seu tempo.
Assim, relembrar a Reforma é também relembrar o caráter revolucionário que ela traz em si manifestado no convite, denúncia e questionamentos presentes nas 95 teses de Lutero e que deve também motivar a todos os cristãos para que sejam abertos ao diálogo, denunciadores das injustiças na sociedade e questionadores dos instrumentos institucionais que servem, muitas vezes, à morte e não à vida.