Sou eu o responsável por meu irmão?
Sou eu responsável pelo meu irmão? Essa pergunta se encontra no início do livro do Gênesis (Gn 4:9) e faz parte da narrativa a respeito de Caim e Abel. Ela surge em resposta a uma outra feita por Deus a Caim a respeito do paradeiro de Abel que havia sido morto. Embora seja um simples diálogo, ainda hoje ele nos faz refletir a respeito da nossa relação com nossos irmãos e irmãs. Gostaria de propor dois aspectos que a resposta de Caim à pergunta feita por Deus nos faz pensar a respeito da nossa relação com nossa irmandade.
O primeiro, diretamente ligado à narrativa, tem a ver com a indiferença. A resposta de Caim denota uma postura indiferente em relação ao seu irmão Abel. Se trouxermos para nossos dias, isso quer dizer que simplesmente não nos é importante saber aquilo que acontece com quem está próximo de mim e com minha irmandade que está na Terra. Dessa forma, tanto faz se quem mora na mesma região que eu passa fome, tem necessidades, é violentado ou violentada em seus direitos ou em seus corpos, não tem os filhos e filhas na escola, etc. Se não faz parte do meu convívio e se não tem minha amizade, então, simplesmente, não preciso fazer nada para ajuda-los ou me importar, verdadeiramente, com eles. Basta passar a ideia de alguém engajado com justiça social e equidade de todos nas redes sociais para me ver como alguém que realmente se importa com todos. Em um mundo virtual, em que ações efetivas tem se tornado cada vez mais raro, passar a impressão de que se é alguma coisa se torna mais importante do que realmente ser aquilo que se fala. Porém, ao fazermos isso, não estamos simplesmente dando a mesma resposta que Caim deu com uma pitada de hipocrisia? No final, nossa atitude continua a mesma a de Caim com relação à Abel, seu irmão.
O segundo, trazendo de uma maneira interpretativa da atualidade, tem a ver com o julgamento que fazemos em relação àqueles e àquelas que pensam diferente de mim. Não dificilmente, ouvimos pessoas dizerem frases do tipo sempre que algum escândalo acontece: “não tenho nada a ver com isso”; “eu, ser igual a esses? Jamais”; “Que eu tenho a ver com essa pessoa que faz isso?”; “Eu jamais faria algo assim”, dentre diversas outras que poderíamos listar e, com certeza, seria do mesmo teor. Ao fazermos isso, nos colocamos em posição de julgamento em relação ao nosso irmão sem reconhecermos que também seríamos capazes de cometermos os mesmos atos que esse cometeu. Dessa forma, a pergunta de Caim, se tomada em seu sentido justificador, nos coloca não como indiferentes, antes, como superiores em relação ao nosso irmão ou irmã.
Qual o perigo disso? O perigo está, justamente, ao nos considerarmos fortes o suficiente para não sucumbir às tentações e nos transformamos nos monstros que combatemos. Se observarmos bem, transformarmos nos monstros que combatemos é o que mais acontece em cenários atuais. Basta vermos que os que mais condenavam a corrupção têm se revelado pertencerem aos mais corruptos, os que mais condenavam os homossexuais se revelaram, com o passar do tempo, também homossexuais, os que condenavam veemente a teologia da prosperidade se transformaram em um de seus pregadores e a lista segue indefinidamente.
Nisso tudo, o que é importante de percebermos é que, quanto mais nos colocarmos como aqueles que dizem: “que tenho eu a ver com meu irmão?” maior será a probabilidade de, dadas as circunstâncias propícias, nos tornarmos naquilo que condenamos. Assim, reconhecermo-nos como capazes do mal em sua pior forma é, talvez, a maneira mais sábia de nos tornarmos pessoas mais humanas. Como disse Paulo: “quando sou fraco, aí que sou forte.” (2 Co 12:10).
Estejamos sempre atentos para que nosso olhar em relação ao nosso próximo não se encaixe em nenhum desses, antes, que seja um olhar que reconheça a importância e também se reconheça nas dificuldades e fracassos que todos e todas passamos ao longo da vida. Assim, no lugar da indiferença surgirá um importar verdadeiro e no lugar do julgamento, a misericórdia entre nós que somos todos iguais.