Sobre a responsabilidade, liberdade e indiferença
Não dificilmente confundimos os termos responsabilidade, liberdade e indiferença. Embora esses termos sejam muito falados, muitas vezes por não serem diferenciados, são usados de formas temerárias.
Olhar os temas da responsabilidade, liberdade e indiferença a partir da perspectiva cristã se mostra, então, tarefa importantíssima para que esses termos sejam usados de uma maneira coerente com todo o texto bíblico, não usando um de forma isolada dos outros, visto estarem intimamente ligados e ser uma linha extremamente fina que separa esses conceitos.
Que qualquer um possa ver a diferença etimológica e saber que um termo não é igual ao outro é, de certa forma, esperável. Contudo, ao colocar os termos em relação é que começam a haver confusões.
Comecemos com a responsabilidade. O caráter pessoal da responsabilidade nos é dado tanto pela definição dessa palavra quanto pelas nossas experiências diárias. Que cada um seja responsável pelos seus atos e responde por eles é algo que ninguém tem dúvidas, afinal, não há como sermos responsáveis por aquilo que outro faz. Em última instância, por mais que insistamos, ou tentemos convencer o outro de alguma coisa, a responsabilidade de cada decisão sempre cabe ao que a toma e nunca àquele que influenciou ou coagiu. Atribuir responsabilidades a outro por qualquer motivo chega a ser bastante ingênuo de nossa parte. Nesse ponto, mesmo que nos sintamos responsáveis, isso não passa de mera ilusão nossa. Ninguém pode ser responsável pelas escolhas do outro e nem deve se responsabilizar por isso. Cada qual sabe daquilo que faz e cada um é responsável por aquilo que se faz.
Porém, ao mesmo tempo em que não possuo responsabilidade no lugar do outro, possuo uma responsabilidade diante do outro. Acredito ser claro, uma vez que, de acordo com a perspectiva cristã, somos irmãos uns dos outros e devemos amar uns aos outros. Pela perspectiva do amor, me torno responsável pelo outro. Essa responsabilidade, contudo, não deve ser vista como dominação em relação ao outro, antes, como suporte.
Ao percebermos que cada um de nós é diferente um do outro e que possuímos conhecimentos e habilidades diferentes em relação uns aos outros, a questão da responsabilidade pelo outro também se dá nessa ajuda mútua em relação aos diversos conhecimentos que cada um possui.
Nesse sentido, se meu conhecimento sobre finanças é maior que o do meu irmão, sou responsável diante dele, em avisar que determinada compra ou investimento tende a ser de auto risco e pode causar prejuízos futuros.
O grande problema é quando passamos a confundir a responsabilidade do outro com a responsabilidade diante do outro e pressupor que o segundo é tentativa de dominação e palavra final frente àquilo que o outro deseja.
Com isso em mente, entramos no segundo ponto que é o caráter da liberdade. A liberdade pressupõe a responsabilidade. Somos responsáveis porque somos livres para as escolhas que fazemos e para as decisões que tomamos. Se não sou livre para tomar minhas decisões, como posso ser responsável por elas? Se excluirmos o caráter da liberdade, imputar responsabilidade ao outro se torna extremamente leviano e maléfico. Assim, se desejamos trabalhar a questão da responsabilidade seja do outro, seja diante do outro, temos que pressupor a liberdade minha e do outro. Sem isso, falar sobre as responsabilidades se torna infrutífero e sem sentido. É nesse ponto que liberdade, responsabilidade do outro e responsabilidade diante do outro se cruzam: minha responsabilidade diante do outro em nada tira a responsabilidade do outro que é condicionada pela liberdade que é própria daquele que decide.
No que tange à responsabilidade, em nada entra a demanda daquilo que se diz necessário para determinada situação. Se compreendermos bem a relação entre responsabilidade do outro e responsabilidade diante do outro, pressupor que alguém possa querer ser responsável pela demanda do outro ou racionalizar essa demanda se torna sem o menor sentido (embora pensar se determinada demanda é realmente uma demanda é de extrema necessidade em alguns momentos da vida. Mas, mesmo isso, não pode ser feito por um alguém diferente daquele que possui a demanda). Ver a demanda do outro na perspectiva do outro está mais ligado à empatia do que à responsabilidade como tentativa de resposta final. Afinal, seria possível dominar ou se responsabilizar pela demanda alheia? Todos sabemos que não. Agora, se de alguma forma, for possível fazer a experiência da demanda alheia, é aconselhável a fim de que, entendendo a responsabilidade diante do outro, possa alertar sobre as curvas de um caminho já trilhado.
A confusão entre liberdade, responsabilidade do outro e responsabilidade pelo outro nos leva ao terceiro ponto que é o da indiferença. Ao pressupor que toda tentativa de instrução em relação àquilo que o outro define como demanda é tentativa de dominação, nos faz seguir pelo caminho da indiferença em relação às escolhas que esse outro faz. Assim, tanto faz se ele escolhe A ou B, tanto faz se ele entra em algo que se vislumbra como um mau caminho. Embora, como falamos acima, não seja certo interferir na liberdade do outro e toda tentativa de tomar a responsabilidade do outro seja ilusória, ainda assim, o amor cristão nos cobra que sejamos responsáveis diante do outro. Dessa forma, ver o caminho errado e não falar nada se torna a atitude mais cruel que se pode fazer em nome de um princípio de responsabilidade do outro mal entendido.
A responsabilidade diante do outro nos faz ver que a pessoa é bem mais importante do que a demanda que ela pressupõe ter.
Se falamos na perspectiva cristã, Jesus se mostra como o melhor exemplo. Mesmo que Jesus não interferisse em nada nas decisões das diversas pessoas que se chegavam a ele, em nenhum momento Jesus se vê como indiferente a essas pessoas, antes age de acordo com a consciência daquilo que denominamos mais acima como “responsabilidade diante do outro”.
No caso da mulher adúltera, relatado em João 8, Jesus decide por não jogar a pedra e lança a pergunta para os demais. Aqui fica clara a relação entre a liberdade, a responsabilidade do outro, a responsabilidade diante do outro e a indiferença. Jesus, em sua liberdade e responsabilidade diante do outro que está a sua frente, decide não jogar a pedra, embora pudesse jogar e até era o desejo dos que estavam ali que ele jogasse, assumindo a responsabilidade de sua escolha e não se mostrando indiferente à pessoa que está na sua frente ao propor algo diferente daquilo que a lei falava que deveria ser feito.
No caso de Marta e Maria (João 11), mesmo não interferindo na opção de Marta e respeitando sua responsabilidade pessoal, não fica indiferente a ela, antes a alerta de que essa está preocupada com diversas coisas e não com o necessário.
No caso da mulher Cananéia (Mt 15,27-28) Jesus não se mostra indiferente, antes assume a responsabilidade de sua fala e cura o filho da mulher, uma vez que tem consciência de sua responsabilidade diante daquele que chega até ele.
No caso de Zaqueu (Lc 19,1-10) Jesus não está indiferente, antes, o chama para o jantar (seria possível aqui esse chamado de Jesus ser considerado como a responsabilidade de Jesus diante de Zaqueu? Algo que podemos deixar em aberto) e deixa Zaqueu livre para tomar a decisão que lhe apraz tomar, sem interferir nessa decisão.
Colocar Jesus em uma posição de que não fez nada e não disse nada, esperando simplesmente que aquele que estava diante dele agisse da forma como lhe aprazia não traz a imagem do Jesus do relato evangélico, antes traz um Jesus indiferente àquele que se aproxima dele. A atitude de Jesus de alertar Marta, de chamar Zaqueu, de responder a mulher Cananeia nos mostra que a responsabilidade diante do outro é um ato de amor.
Assim, se não tomarmos cuidado, trataremos responsabilidade como indiferença e essa como liberdade, não reconhecendo que, mesmo tão misturadas, se não forem bem entendidas, nos transformarão em um ajuntamento de pessoas isoladas em suas demandas ao invés de uma comunhão de pessoas que amam uns aos outros e, por isso, se sentem na necessidade de falar aquilo para o qual alguns irmãos se tornam cegos.
Pensemos.
Fabrício Veliq
14.10.2015 – 16:43