Um cristianismo com hipermetropia
Seguindo na linha dos problemas de visão que iniciamos na semana passada, a hipermetropia é mais um entre os amplamente conhecidos entre nós. É bem provável que também tenhamos contato com diversas pessoas que sofrem desse mal em nosso cotidiano, ouvindo sempre sobre o quão difícil é, para elas, ler algum livro sem óculos ou lentes corretivas, ou ainda olhar alguma mensagem no próprio celular.
Essa hipermetropia, que é a dificuldade de ver de perto, atinge cerca de 65 milhões de brasileiros e brasileiras, segundo dados de 2013 do Conselho Brasileiro de Oftalmologia, o que por si só já revela o quanto é um problema relativamente comum em nosso país.
No texto da semana passada, falou-se a respeito de um cristianismo míope, que tem dificuldade em ver as coisas que fogem do seu arcabouço conceitual e teórico. De maneira análoga, no texto dessa semana pensa-se a respeito de um cristianismo que sofre com a hipermetropia, tendo como marca característica a falta de capacidade de identificar as questões que lhe estão próximas, por conseguir focar somente nas coisas que lhes estão distantes.
É muito comum ver pessoas que se dizem cristãs e são preocupadas com a salvação do mundo e em estarem mais perto de Deus, mas incapazes de perceber os sofrimentos que acontecem na própria cidade, em que, muitas vezes, há fome, miséria e exploração. Vivem em louvores e danças proféticas que tentam alcançar o céu por meio de melodias e performances, e, diversas vezes, esquecem-se de que a proposta de Jesus consiste justamente em que o Reino de Deus venha ao mundo trazendo a paz, a restauração, a igualdade social e a justiça.
Outra característica de um cristianismo que sofre de hipermetropia é trazer consigo uma preocupação literalista muito grande com relação ao texto bíblico. Com isso, diversas vezes, por estarem presos às letras do texto, distorcem os ensinamentos contidos neles e não se atentam ao seu significado dentro de todo o contexto bíblico e cristão que este texto traz. No lugar de uma leitura amorosa do texto bíblico, sob o prisma de Jesus Cristo, que deve ser o único padrão para compreensão de qualquer passagem do Antigo ou Novo Testamento pelo viés cristão, preferem uma leitura que condena, exclui e que seja intolerante com aqueles e aquelas que não pensam Deus e a sociedade da mesma forma que a doutrina cristã. Com isso, ainda que o texto bíblico esteja tão perto e tão acessível, a hipermetropia impede que identifiquem ali a mensagem de amor de Deus, conforme revelada em Jesus Cristo.
Quando isso acontece, há uma tendência muito grande de se terem pessoas que se dizem cristãs, mas são desconectadas e desencarnadas do mundo por não perceberem que o Deus que tanto desejam alcançar em seus louvores não se encontra distante e em algum lugar nas alturas, mas é encontrado no rosto de cada pessoa que sofre, tem sede, fome, é desabrigada, nua, carente de socorro e presa, como o texto de Mateus 25 deixa bem claro. Juntamente com isso, há a grande probabilidade dessas pessoas serem daquelas que se apegam demais às letras do texto e esquecem-se do seu sentido profundo que visa ser uma boa nova de amor e salvação para qualquer pessoa que o leia e o escute.
Diante disso, assim como falamos a respeito de um cristianismo míope, ressaltamos a necessidade de estarmos atentos aos sinais de possíveis hipermetropias que possam afetar nosso olhar sobre o mundo, a sociedade, a política e até mesmo a própria religião que seguimos.
O exemplo de Cristo, sua aproximação dos mais pobres, sua luta em favor dos seus direitos, contra os detentores do poder religioso e político de seu tempo, sua abertura ao diferente, sua subversão com relação aos dogmas que escravizavam, mostrando que o ser humano sempre foi mais importante do que as normas, deve ser sempre o parâmetro pelo qual avaliamos se estamos sofrendo de hipermetropia ou não.